[Você pode ler este texto ao som de Big Girls Don’t Cry]
Ele passou no drive thru e me perguntou se eu queria batatas médias ou grandes. Eu disse que queria ir pra casa. Saí de lá com o estômago vazio e uma vontade enorme de chorar.
Passamos da quinta avenida e ele me disse, sem olhar nos olhos, com a cabeça virada pro painel do carro, que não dava mais. Já percebeu que eles nunca olham quando não dá mais? Parece que a gente fica insuportável, parece que a nossa presença ou fisionomia ou o simples fato da gente existir naquele mesmo espaço se torna um peso. Se ontem ele me olhava e passava as mãos nas coxas e me puxava pra perto, hoje eu sou evitada. É que o abandono dói menos quando a casa já tá vazia, então a gente entra com a luz apagada e finge que não vê os móveis, os cômodos e os porta-retratos. Ele fez o mesmo.
Cruzou pra uma ruela, acho que ele queria prolongar o passeio desconfortável. Eu perguntei se tinha acontecido alguma coisa, ele disse que não, mas sempre acontece, alguma coisa acontece mesmo que seja só a ficha caindo. Acontece que ele já não era ele, já não era meu, já não era o cara que me agarrava pelas coxas nem o cara que queria dormir comigo. Ele era um cara frio, parado feito estátua, com os braços tensos no volante, balbuciando uma narrativa desconexa de como não dava mais.
Tudo bem, dizia eu, uma hora o fim ia chegar, sempre chega, até pros mais descrentes. Chega quando a gente menos espera ou chega quando a gente implora por ele. Não era o meu caso: eu já esperava, mas torcia pra que ele passasse longe. Apesar de tudo, dos últimos dias e do esvaziamento da gente, eu o amava. Se tivesse que dizer isso olhando nos olhos dele, eu poderia dizer que eu o amava pra caramba. Nem naquele dia em que a gente terminou e eu transei com um cara no banheiro da balada eu deixei de pensar nele. Enxergava a barba dele, as mãos dele, a bunda dele naquele cara e comecei a rir. O cara foi embora, eu ri sozinha no banheiro, fui pra casa soluçando. O desespero nem sempre é caricato, de vez em quando ele surpreende a gente como uma boa piada. Eu era a tal piada.
A gente já tava quase chegando quando eu perguntei se ele queria passar lá em casa pra pegar as coisas. Ele perguntou se tinha problema, porque eu tava calma demais. Repito: o desespero nem sempre é caricato, mas dessa vez eu tava com o peito meio vazio, meio sem saber ainda o que aquilo tudo queria dizer. Digo, queria dizer que eu não o encontraria no meio da madrugada e que teria que arrumar alguém pra ligar se batesse insônia; significava que eu não teria que almoçar na casa da mãe dele no Morumbi e nem ter que aturar o pai insuportável que ele tinha; era uma lista extensa de coisas que eram e não seriam mais. Eu disse que tava bem, obrigada, que ele podia passar noutro dia pra não prolongar a frieza. Desci no 304.
Entrei no elevador e apertei botão nenhum. Ele já devia ter virado a esquina, tava a 80 por hora quando chegou. Pedi um táxi e fui dar uma volta, refiz o mesmo caminho que ele tinha feito, dessa vez tentando me lembrar de tudo e digerindo as palavras. Podia ter deixado pro dia seguinte, mas não queria que a minha cama fosse o palco dele, queria público, queria resolver tudo ali na hora pra não levar mais nada dele pra casa.
Repassei tudo até a quinta volta. Na mesma velocidade, o carro e eu. O taxista me perguntou se poderia entrar no drive thru e eu disse que tava tudo bem, sem problemas. Ele me perguntou se eu aceitava alguma coisa, se queria batatas médias ou grandes. Eu disse que queria ir pra casa.
Saí de lá com o coração vazio e com uma vontade enorme de chorar.
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