Sem açúcar, com afeto


Uma gotinha de leite apenas para constar. Uma colherzinha modesta de açúcar, quando muito. Um apetite voraz pelo amargo, percebi uns tempos depois, e sorri para minha imagem cansada no espelho do restaurante. Você sempre abraçava a xícara com as duas mãos, quase como se temesse uma fuga inusitada, e falava baixinho, em tom de segredo, criando ao redor de si uma aura de suspense que muito me fascinava. Quantas caraminholas naquele cérebro atípico. Quantas dezenas de frases não ditas, se debatendo nas pregas vocais e expostas, violentas, naqueles olhos que eram um meio do caminho entre o marrom, o verde e o desespero.

A cabeça produz mil histórias quando a gente está disposto a se apaixonar. É bonito ver as entrelinhas de alguém, mesmo que estas entrelinhas não sejam nada além de projeção de desejos. Eu via no seu silêncio um pedido de ajuda e queria dar um jeito de organizar aquele emaranhando de frustrações e transformá-lo em algo linear, atraente, digerível. Achei que podia. Achei que deveria. Não sei bem o porquê – mentira, eu sei, e me dói que este motivo não tenha sido você, mas inteiramente eu.

Veja bem: fui eu quem quis. Se tive abertura, não sei. Acho que forcei minha entrada com um pé de cabra, para falar a verdade, porque eu sou delicada assim. Não pedi licença porque não sabia pedir nada. Sabia me dar em grandes porções e tomar da mesma forma, sempre voraz, sempre faminta. Estou tentando aprender a ser sutil; acho até que já melhorei, sabia? É difícil, mas uma boa luta sempre desgasta.

Guardei os seus livros. A razão disso, eu sinceramente não sei. Seu gosto para literatura vai na contramão do meu. Abrange um sem número de autores de nomes feios e títulos de dez ou mais (muito mais) palavras, enquanto eu fico no cru, no chucro, no cuspe – pensando bem, eu queria ter despido o seu corpo da armadura a golpes de machado. Assim. Grossa e quase espartana. Se pareço um pouco afrontada, bem, é porque talvez eu esteja mesmo – ou de fato o seja. Estou trabalhando na minha calmaria porque é o que você sempre me recomendou, mas ainda não me pareço muito com você.

De longe, não resisto e penso que gostaria de saber se lhe sobrou qualquer coisa de mim. Não sei se vou descobrir um dia. Não sei nem se quero. Sei que ando com sua coletânea de poemas na bolsa para o caso de esbarrar com você ao virar na Avenida Paulista e conseguir devolvê-la (toda rabiscada, como quem não quer nada). Sei que sento sozinha naquela padaria velha da Santa Cecília de vez em quando e meus olhos passeiam aflitos, buscando seu corpo pequeno no meio da multidão em polvorosa lá pelas seis horas da tarde. Sei que bebo o café amargo para não esquecer. E não esqueço. Nem poderia.

Juliana

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