Quanto de alguém há em um livro empoeirado na estante, num casaco de moletom embolorado no fundo de um armário ou em uma música que toca em uma rádio aleatória?
Gostaria de dizer inúmeras coisas bonitas sobre a forma como você me ensinou a amar. Gostaria também de dizer que suas leituras, músicas e roupas me causam boas lembranças. Se eu fizesse estas coisas, no entanto, estaria mentindo. A única coisa realmente linda que vivenciamos juntas foi o momento do nosso adeus – este, acredite, eu guardo com bastante alívio e satisfação. Houve uma explosão, uma arrebatadora explosão, e então aconteceu: fui-me embora com a cabeça erguida. Mesmo que eu tenha chorado na hora e depois e durante muitas e muitas semanas, foi bom. Essa separação abrupta, necessária e de forma alguma gratuita (apesar de você ter ter tentado me dizer umas tantas vezes que eu havia sido tremendamente indelicada ou que poderia, precisaria, deveria ter me preocupado enormemente com a sua cara de tacho por não ser aquela que deu a última palavra) foi a minha redescoberta de mim.
Você quer a verdade? Pois bem. Acabou porque você estava muito preocupada se masturbando no espelho para conseguir olhar e enxergar qualquer outra coisa. E eu deveria ter percebido a sua inclinação para Narciso desde cedo, mas eu gostava demais da imagem que havia criado na minha cabeça para pensar em qualquer outra possibilidade. E com isso firme em mente, olhei para você como quem olha para o futuro, moldei minha vida às suas constantes exigências e tentei de verdade ver o mundo como você via. Hoje percebo que foi maravilhoso não ter conseguido. Oxalá me livre de enxergar tudo pela ótica de alguém que parece mesmo acreditar que o universo foi feito para dançar em êxtase ao seu redor.
Esta carta não tem o intuito de mudar aquilo que você pensa. Não acredito sequer que ela fará com que você tenha um breve momento de reflexão. Esta carta é por e para mim, que finalmente ouvi a música que você cantava seminua no banheiro na rádio e não quis sair e deixar a roda do carro passar por cima da minha nuca. Esta carta é por mim e para mim, que lavei as suas calças e blusas com sabonete líquido, derramei meio litro de amaciante cheiroso em cada uma delas para garantir que seu cheiro não teria chance e doei. É meu lembrete e a minha auto-congratulação porque atirei na lixeira o último livro que você abandonou em casa e não senti o que pensei que sentiria. Em vez da culpa que você plantou no meu peito e que eu deixei crescer – como uma erva daninha que destrói o jardim inteiro, se me permito ser um pouquinho dramática -, fui tomada pela mesmíssima sensação agradável de estar me devolvendo para o meu corpo.
Quanto de alguém há na vida e nos traços e no sorriso e nos passos e nos trajetos e nas escolhas e nos medos de quem já foi tocado e machucado por ele? Respondo: hoje, nada. Nada.
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