Eu quero tentar te machucar pra você lembrar de mim


O barulho infindável dos dedos dele contra as teclas. As horas correndo no relógio da estante. A falta de ternura no jeito como ele se direcionava a ela e a maneira como mudava de assunto sempre que a moça, meio ansiosa e afoita, afastava os lábios para gaguejar palavras. Tantos pequenos e enormes detalhes, tantas minúcias dolorosas, e dela, só o silêncio. E o medo também. Não de uma reação violenta, mas talvez do contrário disso: do grande nada. Os nadas a assustavam mais do que os furacões.

Colocou-se atrás dele. Suas mãos jaziam ao lado do próprio corpo. Ela, que costumava ser uma mulher cheia de viço e de curvas largas, havia diminuído consideravelmente de tamanho nas últimas semanas. As calças, que outrora abraçavam seus quadris de forma até um pouco violenta, agora encontravam-se abaixo do ilíaco, frouxas e moles como ela.

Até aquele momento.

Não soube que diabo dominou seus movimentos, mas esticou seus braços, brancos de cera, e virou a cadeira em que ele se encontrava. Foi alvo de olhos indignados, mas curiosos. William, o homem que há pouco digitava sem levantar a cabeça do teclado, afastou os cachos da fronte alva e disse a ela uma meia dúzia de vocábulos indignados, um tanto ininteligíveis.

Ela lhe parecia tão insignificante que não merecia palavras completas, apenas resmungos. Nunca verdades, só meias histórias. Tomada de um imenso aborrecimento, a jovem agarrou aquele rosto e, olhos fixos nos dele, ordenou que se manifestasse. Sobre o quê, ele perguntou, e ela apenas deu de ombros. Não compreendendo a natureza daquela afronta, aguardou que ela continuasse.

E ela o fez. Rasgou a garganta para que saíssem as suas mágoas, acusou-o de frequentemente se aproximar quando se via cansado, excitado ou com necessidade de destruir alguma coisa. Com o dedo voltado para si mesma, declarou: este corpo não é um receptáculo de frustrações alheias; ele abriga uma mulher. Ele abriga uma alma. Não é das melhores, não; ela é cheia de falhas. Mesmo assim, ela resiste. Ela vive por e apesar de você. Não sei, no entanto, quanto tempo mais até o dia em que isto aqui vai se tornar um vaso oco.

Ele a encarou como quem vê algo repugnante, mas estranhamente interessante. Cruzou as pernas finas sobre o colo e examinou-a com o olhar crítico que sempre lhe fora característico. Ela, sob a sua análise clínica, sentiu-se murchar um pouco mais, mas não movimentou um músculo sequer.

Um colosso. Uma rocha. A ilha inteira, cercada de um mar violento e pronto para fazê-la em pedaços. Ainda assim, uma obra fantástica da natureza. Quisera eu poder fazer com que ela se visse naquele instante, divina em toda a beleza de quem se permite sangrar publicamente.

Eu não sei de onde é que você tira essas coisas, ele finalmente comentou, quase como quem informava que naquele dia faria sol. Veja, querida, eu dou tudo o que eu tenho – pena que não é o que você quer. Se você soubesse como me dói ouvir isso, não me diria nada assim.

E você liga se me dói em qualquer lugar?, ela pensou em vociferar. Apenas pensou.

Em sua cabeça, o fluxo de ideias foi exatamente assim: quando foi a última vez que você me perguntou se eu estava bem e de acordo com as decisões que também me dizem respeito? Em que dia deste ano você, me vendo amuada num canto da casa, quis saber o que se passou comigo? Em que ocasião você acreditou nos meus projetos ou não me tratou como o fardo que você carrega a tiracolo quando precisa sair?

No final, o que ela disse foi: Por que você não aceita a minha imensa afeição por você como aquilo que ela é e a respeita, valoriza e comemora, em vez de simplesmente tratá-la como o símbolo maior da minha fraqueza?

Com um aceno de cabeça, girou nos calcanhares. Abriu o armário e, ao encontrar a sua pequena mala de viagem, socou dentro dela umas roupas íntimas, meia dúzia de camisetas e algumas calças. Trocou os chinelos de dedos por tênis confortáveis, sabendo que caminharia por uma rua íngreme até o ponto de ônibus mais próximo.

Durante todo o processo, ele enrolou os cachos nos dedos.

Ela abriu a gaveta de documentos. Selecionou aquilo que lhe pertencia e, dobrando cuidadosamente o papel antigo, colocou-o dentro de uma bolsa de mão. Borrifou o seu perfume preferido no pescoço, mas deixou-o sobre a prateleira por saber que pesaria demais.

Encaminhou-se para a porta como quem marchava para um fim de glória. Ao colocar a mão na maçaneta, ouviu um assovio. Como a um cão, ele a chamava. Virou-se devagar, incrédula.

Ei, ele disse com calma. Aproveite e leve aquela caneca horrível que você me deu.

Se esta fosse uma história justa, ela teria se aproximado dele e, com força descomunal, marcado o seu rosto com cinco dedos bem espaçados. Nesta situação e universo específicos, ela faria com que ele caísse no chão do quarto – chão este que ela havia limpado – e, cuspindo uma quantidade pouco preocupante de sangue, a observasse com encantamento e horror.

Como não lhe cabia fazer tal coisa, agiu como ele havia ensinado: balançou a cabeça e, forjando total indiferença, deu as costas para ele ao sair.

Derrubou a caneca no chão da cozinha apenas porque queria ver algo além dela quebrar.

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