Ela dorme com uma paz que perturbaria os mortos e esta é a única hora do dia em que ela tem tempo para respirar de verdade. Do lado de cá, eu a observo com um meio sorriso e um silêncio daqueles que reservamos às entidades que nos trazem paz de espírito. Ela é inteira feita de encantos, mas há algo especialmente apaixonante na forma como ela abre os braços e conquista a cama inteira antes de se conter e fechar-se em uma concha e na forma mística com a qual os seus olhos, azuis como uma nebulosa, passeiam por debaixo das pálpebras como se ela estivesse a visitar uma expedição das mais excitantes.
Sempre crio histórias com as coisas que suponho que ela esteja sonhando. Calculo que, dentro daquela cabeça linda, há um mundo cheio de hipérboles, divagações, delícias e cores tão vívidas quanto o cabelo que ela cisma de pintar de vermelho fogo. Ela é toda fogo. Ela fala com as mãos, tem uma incrível dificuldade de conter a altura das próprias gargalhadas e dança destrambelhada na cozinha lá pelas seis ou sete da noite, quase sempre em comemoração ao fato de que chegou cedo do trabalho. Não conheço muitas pessoas que sejam tão expansivas quanto ela e, observando-a do pedestal em que a coloquei, desejo cada pedaço dessa loucura que é a vida interior que só ela tem.
Ela se move de repente. Não faz muito que mudou a posição da cama e a colocou ao alcance da janela. Todos os dias resmunga e transfigura a fronte quando o sol da manhã ataca o seu rosto, meio inchado de sono, meio perfeito como nada que eu já tenha visto. Daí ela pisca em câmera lenta e olha para o teto por longos segundos contemplativos antes de finalmente tombar a cabeça para o lado e buscar os meus olhos. Como agora, ela sorri um sorriso longo, desses que não vejo senão em filmes com finais que nos fazem chorar, e volta-se devagar para o corpo que compartilha as noites, os sonhos, os pesadelos e os deleites com ela.
Ela mudou o leito de lugar para que eu a veja afagando a pele de alguém que não sou eu. Ela dança na cozinha com todos os vidros escancarados e, por cima do ombro, parece que me convida – então recua, gira e beija outra boca como quem sente uma fome aterradora. Pela minha garganta, desce um gosto amargo que não é ela, mas vem dela, e eu gostaria de gritar que não, que ela não tem esse direito, mas todos os dias, sempre que volto da rua e abro as janelas para espantar o cheiro de mofo da casa, ela me aguarda distante, talvez tão afoita quanto eu.
Bom dia, digo sem palavras. Ela não me dá bom dia, ocupada que está, e é sempre assim. Faz desse aí a sua morada, já que há algo em mim que não lhe serve de casa, menina, mas olhe bem. Um dia desses, não sei bem quando, como ou por quê, mas não tarda (espero), eu me despeço da sua vida e começo a viver a minha.
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