Shh. Chega desse monólogo. Não foi difícil deixar você; difícil foi abrir mão de quem você me vendeu por uns tantos anos. Tem uma diferença grande nisso, até você consegue entender. Que tivemos histórias? Todas as relações humanas sobre a face da Terra possuem histórias – o que é que tem de novo nisso, mesmo? Larga esse telefone e vai se perder lá no bar, na pista, no inferno com os seus novos melhores amigos de ocasião. Quanto tempo esses aí vão durar, hein, rapaz? Faço uma aposta de dias por aqui, e tenho certeza de que ganho.
Você me toma de boba vezenquando, não é? Fui mesmo umas tantas vezes, então até entendo de onde isso vem. O problema, meu chapa, é que a sua percepção de mim teve origem num tempo longínquo, nefasto, do qual não me orgulho minimamente. Sabe o que isso quer dizer? Em bom português: você não sabe quem eu sou. Na verdade, acho que você nunca me soube bem – te assusta saber que há mais nessa carcaça agora do que há uns anos? Sabe o que mudou mais, de tudo? Hoje eu digo não. Não mais sim, exceto quando eu realmente quero afirmar, concordar, aceitar. Hoje refuto, reclamo, bato na mesa com a mão bem espalmada e afirmo, categórica: não. Vou dizer não quantas vezes eu puder na vida, sempre que me der vontade e com um prazer quase orgasmático. Não é só pra te emputecer, não. Se quiser ficar puto, bem, toma mais uma dose que isso passa. Funciona, te garanto. Tomei várias doses porque tinha medo de você não passar. Mas passou.
Ficaram as doses e o gosto amargo do uísque sem gelo, mas você não. Veja, eu estou tranquila. Estava com os pés para o alto e quase dormindo quando o telefone tocou e você começou a falar e falar e falar. Quão desinteressante pode ser um discurso? Percebi que, quando você reclama, sinto que estou desperdiçando mais tempo do que estaria se estivesse, não sei, esperando para pagar as contas na fila do banco. Lavando os vidros do meu carro. Tentando obrigar o gato a tomar uma pílula, que seja. Parece cruel, mas o que é que se pode fazer? A gente fica velho e perde a paciência com ladainha.
Existem coisas mais tristes do que não ser o amor de alguém, o Morrissey mesmo já falou. Uns trinta porres até que são aceitáveis, mas depois disso… o que sobra é negação. Existem mil tragédias lá fora que podem ocupar melhor o seu coração do que eu. Não é que eu não ache que existe algo de muito bonito nessa ideia de almas que se encontram e corpos que se fundem e ligações transcendentais, mas eu acho também que existe uma vida lá fora que ultrapassa – e muito – essa noção velha, batida e pautada nos escritos de gente que tinha medo de colocar a cabeça pra fora da janela e ver a vida que se nega a fazer uma pausa.
No mais, o que é que eu posso dizer? Bebe a sua bebida cara, suja os seus sapatos caros, enche a sua camisa cara de suor. Depois disso, fala mal de mim, volta pra casa, deita, desmaia em paz, que nem um santo, acorda amanhã e olha além do vidro do quarto. Olha o mundo de lá e vê se se admira de qualquer coisa que não seja você. Não. Não me liga mais. Eu disse que ia dizer não, e o som da minha própria voz enquanto pronuncio, articulada, esta palavra linda, me dá mais pompa. Não vem mais. Aqui não tem mais nada. Acabou, escafedeu-se, enfim. Shh.