Esse texto é originalmente do livro “Por onde andam as pessoas interessantes?“, de Daniel Bovolento. Você pode encontrar links para comprar o livro no final do texto.
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[Você pode ler este texto ao som de I’m not the only one]
Suficiente. É exatamente essa palavra: suficiente. É assim que você faz com que eu me sinta toda bendita vez que eu desligo o telefone e ouço um “aham, tudo bem” do outro lado da linha, que mais parece o outro lado do hemisfério, num polo coberto de gelo.
Eu já te causei alguma excitação na vida que te fizesse levantar da cama pra ter vontade de me ver ao invés de ficar pedindo por 5 minutinhos a mais de descanso, de separação de mim? Não. Porque eu não te faço transbordar, não sou a gota d’água nem teu mata-leão. Eu sou suficiente. Ponto.
Não te importa se eu me enrolar numa calça jeans ou descer as escadas num vestido de festas; não importa se eu disser que tô pegando um voo pra Amazônia ou se a ponte aérea vai atrasar no final de semana e talvez eu perca o jantar com seus pais, amor; não importa se eu não gosto do seu programa de TV preferido, você até troca o canal pra me agradar. Não é que você não goste de mim, não tenha afeto ou carinho, até tem, eu consigo sentir, consigo ver alguma coisa distante no jeito como você me olha, não é pena, nem desprezo, você também não é totalmente apático. Você oscila o tom de voz, mas não grita nem fica em silêncio porque você não sente ódio, você não me odeia, ódio é muito forte pra sentir por mim. Porque eu, bem, eu sou suficiente.
Veja bem, meu bem, eu entendo porque já tive amores assim. Suficientes. Que bastavam pra passar o tempo e entregar tudo o que eu precisava, gente boa, inteligentes, com um gosto musical mediano, viajados, falavam umas línguas e enrolavam as deles nas minhas num lençol abarrotado com sexo mediano. Nunca pegamos fogo, nunca congelei por eles. Você também não. Você se mantém morno, e morno é uma temperatura agradável pra você porque você não me ama, mas eu sou suficiente pro que você quer agora. Suficiente.
E qual é o problema de ser isso, só isso, na vida de alguém? Você não sabe, mas eu te digo, te digo toda vez em que te atendo, te digo sempre que deito com você, te digo quando gemo e quando grito, quando desce uma lágrima no meio do orgasmo e não é de emoção por ter chegado lá, amor, é por perceber que você me fita distante, quase como se eu fosse uma parede opaca, quase como se você desejasse alguma coisa que eu não posso ser e não sou. A verdade é que não sou nada disso, não sou teu entorpecente, tenho certeza de que você não morreria por mim. Certeza absoluta de que se um trem tivesse vindo na minha direção e você não pudesse fazer muito, você só lamentaria e diria como eu era boa.
No fim do dia, sabe quando você chega em casa, tira os sapatos, bebe um capuccino quente e sente o corpo esquentar todo? Eu sou essa sua sensação. Enquanto eu sinto tudo o que você pode imaginar, percebo que não te causo o mesmo. É aí que mora o problema: quando eu percebo. Depois que a gente percebe não dá mais pra ignorar e começa a acontecer da gente perceber mais ainda. Perceber os gestos, perceber a temperatura, perceber o olhar vidrado e distante enquanto a gente irrompe num gozo solitário. Percebo tanto que comecei a sentir, acredita?
Não que isso seja ruim. Morno é uma temperatura agradável, eu já disse. Pra você tá tudo certo, tudo no lugar, parece que a faxineira passou aqui na semana passada e só tirou o pó da prateleira. Nenhuma comoção, eu sou cotidiana. Você se acostumou comigo. E não é que seja ruim, eu só não transbordo. Fico ali, certinha, na medida certa. Copo meio cheio, sabe? Visão otimista das coisas. Não te causo frio na barriga, vai ver é por isso que você não se importa quando eu roubo o lençol de noite. Não deveria, mas não falo nada. Sei que incomoda e sei que uma hora eu explodo, e talvez nessa hora eu te cause impacto, eu te exploda também, eu arranque de você tudo aquilo que eu sempre quis, mas tudo o que eu sempre quis foi só amor e eu não tive. Então me calo, porque acho que nada que eu fale vai te fazer cócegas ou provocar choro. É bom, vai bem, tudo bem, obrigada. Porque é exatamente assim que eu me sinto: suficiente.
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