[Você pode ler este texto ao som de I can’t make you love me]
Mesmo que eu pisque os olhos na velocidade exata que me indicam as revistas e me revire de cabeça pra baixo pra tentar caber no seu avesso, você não nota. A gente troca duas ou três palavras, eu puxo assunto, tento levar adiante o papo manjado sobre cães só pra falar que eu tenho um labrador grandão e bonito que você adoraria conhecer. Você até responde, liga duas ou três vezes, bate um papo legal do cinema e me beija, depois você vai embora e só muda de nome, cor de cabelo, o jeito de virar os olhos, só muda mesmo personagem quando eu queria que mudasse o roteiro todo da peça.
É engraçado isso porque eu me esforço. Me encaixo ali direitinho no que parece ser seu dossiê e ainda aplico umas técnicas elaboradas que aprendi uma vez num programa tailandês que serve pra trazer um amor em menos de três dias. Mais eficiente que mandinga e eu nem preciso aprender a jogar búzios, é tudo na força de pensamento, tá dizendo a menina com um sotaque engraçado que eu encontrei no Leblon dia desses. Tento me encaixar em você já que a nossa compatibilidade no last.fm é alta, a gente tem uns 105 amigos em comum no Facebook e eu até gosto da mesma cor que você. Fico ali tentando entrar, não sei se você veste P ou M, mas eu consigo ser grande ou pequena o suficiente pra caber no teu tamanho, viu?
E você não é só um, nem dois, três seria demais, mas a conta já passou disso. Você é todo cara que me olhou nos olhos, pediu desculpa, disse que não ia funcionar e me rejeitou. É todo mundo que já embrulhou umas tristezas no pacote e deixou lá no quarto pra eu levantar com a sensação de que o mundo tava desabando e que eu tava fazendo tudo errado outra vez. Ia passar, sempre passa, bola pra frente, conheci alguém, só mais um, mas vai passar também. O que não passa nunca é a culpa que eu prego na sala como se fosse um Picasso pra enfeitar minhas lembranças doloridas.
Tava vendo no Discovery que a memória afetiva (quase) nunca falha. Ela registra tudo: de sabores a odores adocicados, de primeira música ao perfume que usava pra sair à noite, da mania de enxugar as mãos duas vezes ao descaso com que mexia no cabelo. Ela associa ações e situações a pessoas e isso faz com que algumas coisas nos lembrem bem de alguém justamente por termos vivido algo marcante com aquela pessoa. É isso que a gente chama de recordação, geralmente. Nesse sentido – e falo de forma leiga aqui – a lógica seria clara: a gente não guardaria recordação nenhuma de quem nunca passou pela nossa vida. Mas não é assim que acontece, né?
Além de guardar recordações, tirar da geladeira pro microondas e viver de emoção requentada, eu também me alimento de culpa. Por que eu não consegui te fazer ficar, mesmo nos moldes, mesmo no tamanho, mesmo que se você quisesse era só avisar que eu tentava me trocar na loja. Me culpo porque você não me achou interessante, não me achou bonita, talvez eu estivesse um pouco gorda, eu teria que te agradar em mais o quê? A culpa é minha por não ser seu tipo ou por ser e mesmo assim você não me querer, o que é ainda pior. Pior porque só prova que eu fiz algo de errado pra não atender as tuas expectativas, que eu te frustrei no meio do caminho, que eu não segui a receita pra te conquistar direitinho, deveria ter começado na segunda-feira. Culpa minha, óbvio, e bem feito que eu me sinta destruída sempre que você vai embora e, Doutor, e se eu não pudesse fazer nada? Porque tem umas coisas que fogem do nosso controle e talvez essa seja uma delas. Talvez não importasse o quanto eu me dedicasse, o quanto eu quisesse casar com teus gostos, o quanto eu queria que desse aquele match esperto na vida real, porque isso não depende de mim.
Na verdade, pensando melhor, nada depende exclusivamente da gente. A gente pode tentar oferecer pro outro o nosso mundo e torcer pra que ele queira ficar se a gente se encantar pelo dele também. Não tem manual, dieta de segunda-feira, programa tailandês ou mandinga que traga amor. Essas coisas são tão imprevisíveis quanto a conta do meu cartão de crédito no fim do mês. Mas o processo normal é sentir culpa por não ter sido o amor de alguém, por não ter inspirado o amor de alguém, e isso se torna um ciclo de auto-negação tão grande que nem cabe nesse texto. Culpa vai sendo mastigada, embolora no estômago, se torna martírio e quando for ver, a gente tá por aí achando que não é bom o suficiente pra ninguém só porque entendeu tudo errado nessa coisa de paixão, pessoas, expectativas e sentimentos. Amor não é ciência exata que a gente garante de olhos fechados que 2 + 2 = 4, não tem como “caber” em alguém, não tem como seguir todas as regras pra garantir o sucesso da rota. Isso só gera frustração.
Não foi minha culpa, nem culpa do meu corpo, nem culpa da minha personalidade se o menino da quinta série não quis me dar a mão no recreio. Se o carinha mais velho do colegial preferia ruivas e meu cabelo tingido não mudou nada. Se o alemão não gostava muito de sueca e eu só sabia jogar isso. Então, pensando cá com as minhas dores, cheguei à conclusão de que eu não podia fazer nada e não tinha nada a ser feito. Eu não podia mesmo ter feito você me amar. E agora não me parece tão ruim assim ter que conviver com isso.
Você também pode gostar desse assunto. Assista ao vídeo abaixo: