[Você pode ler este texto ao som de We Found Each Other in The Dark]
Você entra pela porta da cozinha tentando não fazer muito barulho e esbarra em mim. Esqueço os óculos e me desculpa por ser sempre distraído e pegar numa panela pra bater em você achando que é um ladrão qualquer? A gente se senta no chão da cozinha e ri, ri da gente, ri através do cansaço do dia cheio, ri pela janela e olha uma lua meio gorda, meio cheia de saudade, meio tentando chamar atenção. Faz tempo que você não vem e por que você não volta de vez?
O escuro é sempre tão vazio sem você aqui. Minto, de vez em quando ele completa. Preenche os espaços destacados pela luz, os porta-retratos de madeira que não combinam com meu humor-plástico, preenche as sombras que o meu rosto projeta sem me entregar agora. Mas fala de você e diz como é o teu mundo. Conta das histórias todas enquanto se despe na minha frente pra tomar um banho gelado. As pintas todas no lugar e parece que eu entro numa máquina do tempo que grita: olha, não mudou nada, ela tá aqui ainda e os sinais todos pelo corpo indicam que tá tudo no lugar. No teu lugar. Mas no meu vira bagunça, as coisas mudam e sobram toalhas molhadas e um perfume amadeirado que até combina com meu humor-plástico de manhã.
Deita do meu lado que eu separo café-com-leite e um livro novo. Você terminou de ler o último e veio me contar o que achou, não foi? Não precisa resenhar, esboçar, argumentar ou tentar me convencer de que gostou porque só faço isso pra alimentar teu ciclo literário. Você pode me largar um dia, mas não larga os livros. São minha âncora-garantia de que um dia qualquer você vai remexer no molho de chaves e revisitar o afeto. Se um dia você desfizer essa rotina, não me avisa. Não me avisa porque a espera é felicidade e eu me movo mesmo que os teus sinais continuem estáticos.
Apaga a luz e se esconde em mim. Apaga a gente como sempre foi, como você sempre faz e não me encara mais desde que voltou com os nós dos dedos atados na porta. Pode esconder essa coisa toda que sente, mas não projeta; que é agudo, mas não dá um pio sequer. Se projeta em mim com paladar, audição, tato, olfato, e qual é o sentido desse amor? Já não vejo mais nada no escuro.
Na manhã seguinte, a luz incomoda. Tatear não é mais necessário e os livros foram trocados. Perfume amadeirado combina com ovos no café da manhã ou eu deveria colocar a toalha pra secar antes do mofo? Levanto e ando pelos cômodos da casa de olhos fechados, na tentativa de registrar tudo como se as coisas não mudassem, como se fossem teus sinais inscritos na parede e minha casa fosse teu corpo. No centro da sala, no olho do furacão, abro a janela. Não tem mais lua cheia de saudade e vai demorar um pouco até que ela se encha e você volte pra trocar os livros.
Você foi embora. E eu, poesia.
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