Dessa vez não tinha eco no banheiro. Não tinha melodia e a boa acústica das paredes não ritmava com a água caindo. Ela sentia um choro baixinho enquanto tentava lavar as marcas dos seios. Enojada. Completamente descrente da qualidade dos homens que a tocaram – e a despiram à força. Entraram em atrito com a pele dela – com as mãos nas coxas e nas panturrilhas. Homens desconhecidos, atribuídos de uma força que só os do signo de marte conseguem ter. Combateram as resistências dela e arrancaram a inocência voluntária que uma mulher tem ao se entregar. Violaram cada mínima parte do corpo dela – porque abusaram da alma. Usaram, jogaram e foram embora. Sem telefonema nos dias seguintes.
Ela fecha o chuveiro e apaga o gás. Evita a cama e o próprio corpo. Ainda se sente suja por se deixar levar a isso. Sente que a culpa foi sua por ter deixado que fizessem isso com ela mais uma vez. Não reagiu. Se manteve imóvel enquanto gritava por dentro. Arrebentava os tímpanos imaginários deles, cravava unhas em sua própria defesa. Chupava as bolas e lambia os beiços com pouca saliva e água nos olhos. Sabia que ele se levantaria e iria embora – como os outros foram. Mas a culpa era sua – era a forma que achava de justificar o porquê de nunca ficarem. Mas a verdade é que ela já foi vítima disso, e continuava agindo como se nada tivesse acontecido. Encarava seus agressores nos olhos e desviava. Mandava mensagens pedindo desculpas. Pedia que eles voltassem – e que a amassem. A alteridade dela era interna. Via os outros – e principalmente aqueles homens – como extensões de si mesma. Como se entregar o corpo fosse a sua forma de garantir companhia, mesmo que eles violassem o que realmente importava.
Não gozava. Não tinha a sensibilidade espontânea de se entregar. Fazia isso por medo de ficar sozinha de vez, e por medo de que nem isso eles quisessem. Assumia as rédeas e se deixava ser controlada. Engolia tudo. Sorvia cada gota de gozo e choro. O clitóris era intocável – precisava dar prazer a eles, mesmo que não sentisse uma só coisa. Era normal ser rejeitada e essa era a forma de rejeitar a solidão. Nunca percebeu que era estuprada. Que eles vinham e ignoravam completamente as noites sem sono dela, as declarações exasperadas no celular, as privações e a dedicação exclusiva. Nunca percebeu que eles declinavam as vontades dela, sorriam cordialmente só por convenções sociais e as promessas de bons tempos ficavam só nas promessas. Nunca prestou atenção em como eles renunciavam as mãos dadas, o sono conjunto depois do sexo e a respiração controlada de algum dia de chuva. Nunca reparou que eles tiravam as calcinhas com a boca, mas nunca iam além daquilo. Ela era espaçada e todos os olhares deles a atravessavam. Depois do primeiro estupro sentimental, ela entendeu que seria isso – ou teria que revolucionar a sua forma de entender o amor. Até hoje.
Hoje ela acordou e pegou as roupas sem sair de fininho. Sem fuga desesperada pra chorar sozinha em casa. Ela deu adeus e devolveu as chaves. Se sentia enojada. Com o corpo sujo – e a alma mais ainda. Demorou mais do que o necessário no banho até entender que havia sido violada esse tempo todo – por ela mesma. Decidiu evitar a cama pra evitar os vultos, e as mãos, e os braços fortes – e os abraços doídos. Os beijos de despedida. Os telefones trocados. Os sumiços repentinos e a velha história de ter que recomeçar do zero. Quis evitar o espelho para não se perguntar o porquê de nunca ter reagido antes. Por ter sido fraca. Por achar que aquilo era o mais próximo de amor que merecia, e conseguiria. Resolveu jogar tudo fora. Denunciar os abusos dela mesma. Cobrar alguma explicação. Excluir essa parte frágil e violenta de si mesma. E ir em frente sem rédeas.
Nesse dia, ela teve o seu primeiro orgasmo – quando entendeu que tinha se livrado dos seus maiores demônios, e de si mesma.