Espero que você salve seu mundo amanhã.


[Você pode ler este texto ao som de Trouble – Ray Lamontagne]

Entra aí nesse carro e vambora, rapaz. Não teve nem prazer, nem apresentação. Foi a batida sonora da porta em um momento de fuga que apresentou a gente pro mundo. Ela dirigia um pouco rápido demais, mas o momento pedia fuga. Me questionei se os olhos fixos no retrovisor era alguma preocupação subconsciente com o “olhar para trás” ou com a constante vigilância. A passada de marcha dela era veloz também e os dedos deslizavam rápidos pelo volante. No porta-luvas, um maço de cigarros de palha. Ex-fumante e estressada, então.  Só fuma palha quem é caipira ou viciado. Um celular ligado ao lado dos cigarros denunciava atenção com as responsabilidades. A cadeira era levemente inclinada para trás, o que indicava certa segurança no volante. Aposto que aquele carro era o mundo dela e essa minha análise seria jogada fora dois minutos depois que ela abrisse a boca.

Eu fui salvo por aquela mulher de um assalto no meio da rua. Isso significava uma brusca inversão de papéis se nós fôssemos um romance. Ela seria minha heroína e eu seria sua vítima indefesa. A mulherzinha do século XXI. Nem um pouco másculo e um tanto vergonhoso até. Mas o feito heróico já tinha me conquistado e eu só tava esperando a chance de me descobrir apaixonado por ela. Tira os olhos daí ou você vai arranjar problema, moleque. Ela tinha percebido a baixa dos meus olhos pras pernas cobertas com meias leves. Além de toda a questão da minha fragilização, ela ainda tinha mais idade e mais atitude que eu. Perfeito: um romance impossível, daqueles que a gente caça a vida toda só pra poder contar para alguém que viveu algo parecido.

A minha ideia de romance em quadrinhos é bem pitoresca. Sabe aquela coisa entre o Homem Aranha e a Mary Jane na chuva? Esse aqui é o meu Sin City da vida real. Não tenho joysticks e muito menos um roteiro improvisado dos próximos quadros. Parece que foi feito mangá e já começou do final. No momento em que ela me salvou e acabou com a minha presença de sexo forte, ela matou os próximos capítulos de alguma coisa que poderia vir a acontecer. E parou o carro bruscamente. A minha heroína era bonita. Mas com uma beleza exótica de quem passou o dia trabalhando e carregava algumas olheiras. Sem aquela referência mentirosa da mulher gato maquiada 24h por dia. Ela tinha marcas de combate e de guerra expressas no rosto. Era do tipo de mulher que tinha garras, pelo o que me contava. Ela tinha um quê de fantástica com um humor meio ogro, meio coisa e com o desejo de estar invisível ao mundo quando batia a dor de cabeça e o cansaço. Ela era uma donzela em perigo às avessas que não precisava de ninguém para subir torre ou trocar lâmpada. Já tinha dado uns tapas no príncipe encantado, se desencantado com o sapo e agora procurava um lenhador na floresta de concreto para fazer companhia à ela. E o que eu faço aqui, no meio dessa história, sem encaixe algum?

Enfim, ela parou o carro só para perguntar se eu estava bem. Me disse que eu lembrava um namoradinho que ela teve há alguns anos atrás e que eu parecia assustado. Me pediu meu endereço, mas não disse que ia ficar. Só fez uma curva, entrou com o carro numa avenida movimentada e seguiu falando sobre a sua rotina. Acho que todo herói precisa de um desabafo. Aquele momento em que ele deixa os super poderes de lado e admite a sua parte humana, mesmo que tenha vindo de marte. O caso dela era esse naquele momento. Eu, a vítima de sexo frágil que já nutria um amor platônico por ela, ouvia atentamente e balançava a cabeça em concordância. Ela já sabia que amanhã teria que acordar cedo para poder salvar outros mundos por aí. O dela e o de outras pessoas que dependiam dela, quem sabe. Esse peso (ou fardo) fazia com que ela sentisse na pele a responsabilidade de ser ela mesma. Mas, ainda assim, me deixou em casa após o evento heróico de alguns minutos atrás.

Bati a porta com cuidado enquanto agradecia mais uma vez pelo feito. As lanternas do carro sumiram assim que ela cruzou a esquina e eu nem sabia direito o nome dela. Nem pedi algum telefone para contato. Vai ver ela preferiu manter a identidade secreta. Ela tinha um mundo e alguns poderes e eu só tinha as minhas revistas em quadrinho, a minha mesada e alguma aula na manhã seguinte. Não tinha como assumir um posto ao lado de uma heroína. Daí eu preferi passar pela síndrome de Mary Jane e suspirar sempre que lembrasse do carro e daquela noite. Antes de dormir, ainda, eu pensei um pouco sobre tudo o que ela disse e cheguei à conclusão de que ela não poderia ficar, mesmo que a minha paixão platônica tivesse algum fundamento. É que grandes poderes exigem grandes sacrifícios. E os sacrifícios dela eram diários e se repetiam todos os dias às 7h da manhã. Entra aí nesse carro e vambora, rapaz. Virei para o lado e desejei boa noite e boa sorte para ela com sua missão de salvar seu próprio mundo amanhã.  

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