[Você pode ler este texto ao som de Ordinary People – John Legend]
A gente só percebe a falta quando cai a ficha. É aquele momento que não separa ninguém por raça, sexo ou religião. Todo mundo sente o mesmo, seja dor ou impacto. Todo mundo sente. Aquele minúsculo milésimo de segundo que antecipa a pancada brusca que a gente recebe no coração. Foi assim que eu senti quando me disseram. Quando o cara de branco com sorriso de comercial de TV chegou perto e me disse. Olha, rapaz, ela ainda está bem. Até quando? Isso eu não posso garantir, mas ela não deve segurar por algum tempo. E o que eu posso fazer com isso? Você não pode.
Você não liga muito pra quantas voltas o mundo dá. Sempre foi assim e acho que eu entendi o sentido da espera. Você liga para o bom dia que o Seu José da padaria te dá. Você liga pra cor do batom que vai usar antes de sair para o trabalho. Você liga para as moedinhas barulhentas dentro daquela sua bolsinha roxa de moedas. Você esmiúça a vida e se completa com ela. Não são retalhos. Muito menos migalhas. Você me ensinou que um dia a gente some desse mundo e que os grandes feitos se tornam pequenos. Importante mesmo é quem vai estar lá pela gente na hora do adeus. Você daria um belo roteiro pra qualquer diretor que soubesse reconhecer os lugares por onde passou e as coisas que realmente importam. Até a minha camisa xadrez e o óculos de leitura que me deixavam com um ar parisiense eram mais importantes para você do que pensar no amanhã. Você sempre foi do hoje. Seu modo de vida só transita pelo presente.
Cabine telefônica ocupada e você me fazendo gastar mais de quinze minutos numa fila. Foi assim. Seu primeiro aniversário e você me pediu de presente uma doação para algum orfanato. Não fui, mas pedi para enviarem. Não sei lidar com essas situações delicadas que mexem com a minha humanidade. A minha parte que sente e é capaz de chorar. Seu primeiro sorriso foi impagável. Julho de 86 num show de blues enquanto um cara esperto tocava o piano e eu me entupia de vinho segurando o choro. Você percebeu e sorriu. Eu sempre coloquei você à frente de uma porrada de prioridades minhas. Você nunca foi personagem para conto de fadas. Um ogro e uma artista. Não poderia dar certo. E daí me vem esse câncer para ser o vilão da nossa história imperfeita e incompleta. Eu já suspeitava que isso não teria um final feliz. Eu nem queria que tivesse um final, pra ser sincero. Pra ser sincero, eu te odiei umas cinco ou seis vezes. Você me mostrou que a gente tinha muito que aprender. Mesmo enquanto todo mundo dizia que nós éramos ordinariamente vazios quando nos completávamos. Mas eu ainda não posso colocar um ponto final em você.
Acho que de nada adiantaria se eles te contassem. Você continuaria não ligando. Talvez você vá de uma vez. Talvez você se esqueça da briga de ontem e me desculpe por ter sido tão grosso assim. Talvez você fique de vez. Mas me desculpa por não conseguir segurar isso. Eu sou um desses ogros casca-grossa. Um menino assustado. Minha mãe e você são as únicas que conseguem perceber isso. Isso mesmo. Admito. Eu sou uma criança perdida. Um dos muitos caras que se protegem de sofrer com uma armadura indelével e uma lança. Sempre pronto para o ataque. Não fui feito à fragilidade. Mas agora é por você e só Deus sabe como o ritmo do meu peito mudou de uma hora pra outra.
Você me mudou. Minha cabeça de sonhador mudou e meu sonho passou a ser diário. E meu diário escondido de lembranças abriu uma caixinha na memória para registrar mentalmente uma fotografia de todas as coisas que me fizeram melhor e me fizeram feliz. Todas elas eram da sua autoria. E se eu pudesse fazer só uma coisa mágica nesse mundo, eu desaceleraria o tempo desde a primeira vez em que gostei de você até a sua entrada naquela sala. Você não sabia ou não me contou. Você não queria ou só pensou em como o meu amor por você não podia ir embora também. Talvez a gente congele no tempo e reviva isso tudo mais algumas vezes. Talvez a gente volte no tempo e exploda nas brigas mais ferrenhas. Talvez a gente avance e eu me veja cada vez mais sozinho. Sem você aqui, quem vai me fazer melhor?
É só que. Eu prometi pra você que nunca ia chorar. Mas. Desaprendi a cumprir promessas enquanto eu te via nesse estado. Desaprendi tudo o que sei se não for com você aqui perto para me lembrar de que eu sou melhor que eu mesmo. E você pode continuar esmiuçando a vida do meu lado. Eu vou gostar da sua careca, prometo. O meu pavor mesmo é em ter que te entregar flores nesse rito simbólico de despedida. Porque se você se for, quem morre sou eu. Morre o melhor de mim. Fica pra sempre? Eu não posso te prometer isso. Mas fica? Não depende de mim. Então promete que não vai fechar os olhos até eu sair da sala. Prometo. Eu posso conviver sem rima, sem verso e sem concordância nenhuma. O que eu não posso é ter que carregar o peso de uma vida ordinária sem você.