Esqueci de como era estar com você


[Você pode ler esse texto ao som de Jovem]

Eu me esqueci de como era estar com você. Não lembro dos contornos da tua voz, se você era melhor com graves ou agudos, se a nossa música de karaokê era aquela mesma que eu canto sempre que tô nervoso. Não lembro do gosto da tua boca depois de uma cerveja no bar da esquina e duvido que eu saberia te beijar hoje em dia. Desaprendi a caminhar em você. Parece até que eu mudei de bairro e não de amor.

Qual era mesmo a cor da tua camiseta cor-do-sol-que-sai-no-Humaitá-depois-de-uma-tempestade? Não lembro. Também não me lembro se a filha do teu porteiro passou pra Comunicação ou Ciências Sociais. Ela segurava a porta do elevador quando eu chegava do mercado e sorria. Como você sorria com a mesa de café da manhã posta, mas tudo parece um borrão. O que eu realmente me lembro e o que eu queria que tivesse acontecido se misturam numa narrativa confusa, talvez até mentirosa, que eu conto pra mim três vezes por semana enquanto me pergunto por anda você.

Eu me esqueci de como era ficar na dúvida entre encostar a cabeça no teu ombro ou dar as mãos no cinema. Eu passava mais tempo decidindo se deveria me aproximar do que vendo o filme. Você nunca percebeu isso. Qual era mesmo o nome do último filme antes de você me dizer que não era pra ser? Nunca mais vi o cartaz por aí, mas foi bom, me fez rir porque você odiou. Era engraçado te ver irritado por gastar dinheiro com qualquer coisa que não valesse a pena. Você achava que tinha que ser sério pra tudo. Acho que era medo de se abrir ou medo de perceberem que você não era feito de aço escovado e brilhante como a cozinha da tua casa. Mas não lembro bem, a memória falha de como era você.

Quantas samambaias você deixou morrer no verão de 2005? Vi algumas morrerem de sede, mas de silêncio só eu. Faz tanto tempo que eu não lembro se bati a porta ou se o eco do corredor era no apartamento do vizinho. Nunca mais te vi, mas passei na porta do seu prédio algumas vezes. Nunca parei. O porteiro já era outro e eu não sabia se ele tinha uma filha. Alguns caminhões de mudança carregavam móveis, mas não sabia se levavam plantas ou a mesa dos nossos cafés-da-manhã. Mudei de cidade, de amor e, por muito tempo, não lembrei de você. Lembrei no Réveillon de 2007 e no carnaval de 2010. Lembrei quando voltei pro Rio de Janeiro e fiquei preso num trânsito absurdo de um novo amor. Lembrei de coisas que não lembrava mais. De repente, tava lembrando do teu número, mas resolvi não arriscar. Tem coisa que é melhor deixar na lembrança, principalmente coisa que já machucou a gente. Segui o baile e fui dançar com outro. Mas ainda lembro. Lembro quando viro uma esquina ou saio da cama de um cara com o mesmo nome ou perfume ou gosto ou sacada com plantas que você tinha. Mas juro de pés juntos que esqueci de como era estar com você.

Cê já leu meu conto de pandemia?

É um conto sobre dois vizinhos que se conhecem quando o mundo tá prestes a acabar e compartilham os últimos momentos resgatando dores, saudades, esperanças e tudo o que cabe numa conversa casual. Tá baratinho aqui embaixo.

Comentários