Algumas coisas só vão embora depois de ensinar uma lição


Esse texto é originalmente do livro “Por onde andam as pessoas interessantes?“, de Daniel Bovolento. Você pode encontrar links para comprar o livro no final do texto.


[Você pode ler este texto ao som de No Surprises]

Um dia desses contei aos quatro ventos que você chegou e ficou marcada feito tatuagem. Ficou e eu me lembro que no tal dia, um 15 de junho qualquer, eu tinha comprado croissant de queijo e chocolate em pó, você me pediu uma xícara e tomou café sem adoçante. Tinha sol e tinha uma cortina entreaberta, tinha a gente e um monte de coisas que eu não conseguia registrar. Eu te fotografava pra manter cada passo seu em câmera lenta na cabeça. E se desse pra revelar, você teria visto que aquele 15 de junho tinha sido inteiramente seu.

Você entrou e eu torci o nariz pras ordens, esse foi o primeiro embate. Setembro, acho, no fim, quando já era primavera e um galho ameaçava entrar pela janela. Tirei teu sutiã numa tarde e vi uma marca em alto relevo, toquei e você chorou. Chorou porque a vida marca a gente, marca com ferro e com brasa, marca a ponto de deixar escrito na pele da gente coisas horríveis que a gente queria esquecer. Não eram tatuagens, não foi opcional, me desculpa, amor, tudo bem.

Num feriado em janeiro você não veio pra casa. Chegou no dia seguinte com um gosto de lágrima misturada com batom borrado misturado com Bourbon e eu te perguntava o que era, meu Deus, o que foi, me conta, mas você não parava de chorar e dizia que não cabia em si, não conseguia controlar. Você levantou no dia seguinte como se nada tivesse acontecido e desenhou no espelho, manchou o carpete com batom, pegou o gato e saiu. Já era carnaval, meu bem, o mundo em folia e eu aqui dentro. Não deixou recado, mas continuou marcada. Dessa vez sem tatuagem.

Você morou em mim por mais tempo do que morou comigo. Foi numa quinta-feira, na tal da quinta, num 15 de março, santa coincidência, o diabo gosta mesmo de ver a gente rindo do escárnio dele. Não teve caixa e não foi barulhento, não teve mais do que a comoção necessária pra alguém dizer que tá indo embora e eu não sabia o que fazer com a tatuagem porque era você marcada rasgada esganiçada numa marca em carne viva colorida no meu braço. Você desceu de escada e nem era pra atrasar a chegada ao térreo e pra me pedir pra ir atrás, nada, era sua punição porque você sabia, você sempre soube que homem nenhum no mundo seria como eu, sabia tanto que foi embora pra não me marcar.

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Mas, meu bem, você não sabe que algumas coisas só vão embora depois de ensinar uma lição pra gente?

Não me lembro exatamente quando foi, mas demorou. Você morou em mim por muito tempo mesmo, tempo suficiente pra eu entender que marcas como aquela das suas costas são expostas pra gente o tempo todo, pros outros só acontece à luz do dia. Doem sem que a gente toque e quando nos tocam, doem mais ainda. Por isso o choro, o rosto borrado, o surto manchado, o pedido de dreno feito em cada tatuagem. Por isso o gozo lento, o beijo que segurava as mãos, o medo quando abria a maçaneta. Até o gato notou a sua fixação com o calendário. Você marcava as datas? Programava os surtos? Dizia pra si mesma que iria botar pra fora em doses homeopáticas pra conseguir dormir?

Tem gente que marca e a marca é profunda, corte com gilete ou navalha, precisamente cirúrgico pra causar dor. Os seus foram com estilhaços e pegaram muitas partes do meu corpo, só não mancharam o lugar onde você chegou e ficou feito tatuagem. Olha, eu tentei de tudo, tentei cocaína e heroína, tentei os comprimidos, tentei até floral e acupuntura, mas nada funcionou. Tentei o disco novo do The Who e uma estranha aula de violão que acabou com as cordas quebradas – as minhas e as do violão -, porque a melodia me lembrava o 15 de junho em que eu tinha te registrado. E a música seguinte me lembrava setembro. E trocando a partitura a gente tava em janeiro e daqui a pouco já era carnaval. Tenho tentado, mas ainda não aprendi nada, entendi nada, só sabia que uma hora você iria explodir. Foi num 15 de março, mas ainda não mudei a folha do calendário, porque a despedida de verdade nunca é com a data marcada, nunca é exato feito tatuagem.


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