Depois de tudo, espero que a gente fique bem


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Anestesia. Foi uma espécie de anestesia que eu senti. Ele me disse que não dava mais, que tinha deixado alguém para trás e, em outras palavras, que preferia voltar e resgatá-lo, me deixando à deriva.

Eu só olhei pras paredes e disse “tudo bem, espero que você fique bem”.

Não caiu a ficha na hora, eu sentia nada. Coisa alguma. Porra nenhuma. Ele me abraçava de conchinha e dizia que sentiria falta da minha cama. E de mim? Será que ele sentiria falta ou eu era só um apoio emocional de quem precisava desesperadamente de colo depois de ter tomado um pé na bunda e caído fora de um casamento? Eu te entendo, eu disse, mas isso não me faz sentir menos.

Não demorou muito para ele levantar e ir embora. Num período curto de três horas as coisas todas tinham mudado. Ele tinha cortado o laço, o vínculo, o afeto, o que eu previa pra gente e ainda continuava na minha cama. Ele não era mais a mesma pessoa, eu também não. Voltaríamos a nos evitar dali a algum tempo, tinha certeza. Ele seria um semi-conhecido que eu finjo não ter visto no ônibus, eu seria alguém para se evitar em baladas em comum, morreríamos de pavor de cair num mesmo vôo juntos por conta do constrangimento de ter que encarar o rosto do outro. Não demorou muito para ele atender o telefone, e eu percebi que a vida dele continuava lá fora enquanto a minha tinha dado uma congelada por tempo indeterminado.

O tempo desacelera quando a gente precisa processar alguma coisas. Não foi diferente: a saída dele levou anos. Eu pude reparar nas rugas da testa, que seriam um problema dali a dez anos, quando o sol já teria castigado aquele rosto barbado. Pude perceber as falhas na barba, os ângulos grotescos em torno do nariz, o brinco numa orelha só, a monocelha se formando por falta de cuidado. Reparei nas mãos suando, nas meias do avesso, nas botas sujas do passeio que tínhamos acabado de fazer. Reparei bem nas roupas, nas estampas que ele carregava, no modelo dos fones de ouvido e guardei essa imagem. Guardei muito bem a imagem dele saindo do meu quarto como se precisasse fugir desesperadamente da minha falta de comoção. Para piorar as coisas, o elevador demorou mais que o costume e eu não baixava os olhos. Encarava seco a ida dele, a chegada do número sete, esperava para ver o que ele iria dizer. Ele disse até mais, eu dei adeus.

Anestesia. Tem sido espécie de anestesia que eu sinto. Ando pela casa com o olhar vago, olho para o celular e não sinto vontade de responder, mesmo que fosse ele. Quer dizer, não é mais ele, é alguém que não conheço mais. Cozinho, levo o cachorro para passear, troco o saco de lixo, bebo detóx e como proteínas, corro duas vezes por semana e malho outras três, faço tudo normalmente, mas ainda parece que estou anestesiado. Numa caixa fechada entre sentir tudo e sentir nada e, acima de tudo, sentir falta.

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