Será que um dia vai ser a gente?


Teria ligado pra pedir mais um vinho se não fosse tão tarde e o frio lá fora não berrasse nas janelas e as ruas estivessem vazias, desertas e cheias de cor – cheias de cor, sim, porque tinha você do meu lado e eu não sabia se suspirava ou fingia que estava dormindo pra não te acordar. Ri quando você me chamou pra ver um filme porque dessa vez não teria toda aquela gente e a música alta, não teria os esbarrões e um tanto de olhares vazios que atravessam a gente pra nunca mais. Você perguntou se preferia terror ou comédia e eu nunca sei escolher a trama, mas teria dito que seria romance quando te abracei de um jeito terno pra cacete na despedida e beijei a tua testa, numa súplica dolorosa de ainda não poder te levar nos braços.

Fico olhando as coisas da tua vida enquanto passo os olhos pelos livros de John Green na estante e te imagino lendo, soltando um sorriso involuntário e uma lágrima caindo pelo canto dos óculos com as lentes embaçadas, do mesmo jeito que fica a vida quando o amor e as outras coisas todas saem do nosso controle. Você já sentiu como se as coisas todas que palpitam ai dentro fugissem do controle? É que não faz nenhum sentido eu rabiscar as coisas assim, te pintar e detalhar num quadro colorido pra pendurar na parede do meu peito. Não faz sentido porque tem ele, tem as coisas todas que vocês viveram e você ainda tenta digerir ai dentro, tenta bordar num escudo pra entender um pouco das coisas do mundo lá fora, do mundo aqui fora, mais uma vez.

Não sei se rio do escárnio e bato com a cabeça na parede pra ver se esqueço, se perco a memória recente e paro de pensar nessas coisas, ou se dou corda pra esse nó que vai se atando no meu peito. Essa coisa de amar alguém e ter que esperar, ter que ir deixando o tempo passar e a poeira baixar é honesto pra caramba com o outro, é deixar a vida ir se ajustando aos poucos pra caber alguém novo dentro do peito, mas e com a gente? Como a gente faz pra controlar a coisas toda brotando e criando raiz dentro do peito e te oferecer ele pra deitar e desabafar sobre vocês dois, deitar e pegar em um sono leve enquanto eu passo os dedos pelo teu rosto e fico pensando se isso tudo tá certo, se te encontrei no tempo certo e se você ainda vai me querer por perto amanhã de manhã.

Teria aberto um merlot – pra combinar com o jeito terno e doce que tem sido a vida com você – se não fosse tarde e você tivesse pego no sono, se não tivesse colocado uma trama qualquer na tevê e me contado sobre as coisas da faculdade e as pessoas do teu estágio, os livros que você tem lido e o jeito como flexiona os braços pra virar a direção e me tirar da rota. E só passa pela minha cabeça as coisas do meu passado e como a vida tem sido doce com você, as coisas do teu passado e o que você ainda sente por ele. A gente precisa dar um tempo pra ser honesto com o outro quando o passado recente assombra, mas isso é ser honesto com a gente? Digo, é ser honesto ir brecando as coisas todas dentro da gente pra não atropelar o outro?

Se soubesse, teria dito que seria romance, mas só passei a pensar nessa possibilidade depois dos livros na estante e do beijo de despedida na testa quando o sol ia nascendo lá fora e meu peito ia palpitando acelerado por alguma coisa que eu ainda não sei o que era, mas era por você. E só passa pela minha cabeça se em algum momento, quando o tempo passar e ele também, você vai ler a gente em um desses livros com final feliz que fazem teu sorriso se esboçar e os óculos embaçarem por contar sobre a gente nas entrelinhas.

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