… é, sim! Percebi que, mesmo por relatos inventados, eu falava a verdade… Não, você não me dói mais, apenas quando eu respiro. É tão frequente. Hoje você me doeu feito espinho cravado na pele; doeu fundo, doeu forte; e sangrou como aquela ferida ainda aberta que mesmo o tempo, longo tempo, tem dificuldade de cicatrizar. É que você também faz questão de me machucar; sabe bem como fazer isso, e eu frágil e indefeso aceito suas delicadas apunhaladas no peito, nas costas, na alma e na vida que te dei, e que, por descuido ou maldade, não importa, mataste e mata todas as vezes que me encontra, como se tivesse prazer na minha morte diária, naquele sangue que escorre e na lágrima que desce. Enquanto me mata delicada e lentamente, eu tento te reviver a cada instante: antítese da vida, muito mais que literária, muito mais que tudo que te escrevo e não me lê. Depois que partiu, andei relendo as cartas e bilhetes que me escrevia todas as manhãs antes de sair para o trabalho; eu acho que você nem se lembra mais, não recorda de nenhum “eu te amo tanto”, de nenhum beijo, de nenhuma flor; você esqueceu de tanta coisa, e eu não esqueci de ti, nem de que partiu deixando as cartas e as pétalas envelhecidas do buquê vermelho; deixando toda uma história para trás e uma casa completamente arruinada. Acho que você não me dói mais, e é tão verdade esta afirmação quanto a não-dor deste momento. É que quando se chega a um nível tão mórbido da dor, não se tem mais para onde ir; você se acostuma com todo o negrume, com todo o gosto de derrota, de fracasso. Eu acho que você não me dói mais. Talvez eu me doa, cruelmente me doa, por todas as destruições da vida; me doa por esse poço escuro e frio que habito agora, tão acomodado que não sei mais identificar o que é o limo e o que sou eu, o que é a água e o que sou eu, o que é o escuro e o que sou eu, o que é eu e o que sou eu; talvez eu me doa pela entrega a alguém que me assassinou, ou que, inconscientemente, eu me suicidei me jogando nesse abismo sem fundo que és tu, despenhadeiro bruto espinhoso da morte. Morri há 20 anos, como o menino Caio Fernando Abreu, que tanto amou a vida quando soube que partiria; e eu que tanto amei você enquanto me empurrava para a beira do seu precipício… É, Caio F., estava certo quando escreveu, no conto “Os sobreviventes”, de Morangos Mofados, que “não tem jeito, companheiro, nos perdemos no meio da estrada e nunca tivemos mapa algum, ninguém dá mais carona e a noite já vem chegando”. Só que no meu caso, não sobrevivemos, morremos, e a noite durou para sempre.