Conta pra ele que esse seu jeito descompassado não veio dele, não, mas de uns tantos que vieram antes. Não é mau moço, o rapaz – tem uns olhos bonitos, um sorriso meio torto, vê. Que lhe falta disposição, é fato. Ainda assim, nada que o tempo e umas duas ou três xícaras de café diárias não ajudem a mudar.
Não mente pro moço, não, que ele não merece tanto descuido. Não tem ânsias de te rasgar o peito, como tanto lhe foi feito um tempo atrás. Não é dos mais vivos, verdade. Fala manso, parece que se desliga do mundo vezenquando. É um menino, o tal, por mais velho que seja.
O tempo foi duro com uns, mais macio com outros; disso você sabe, mocinha, já que não é criança desde os dez ou doze. Cada um recebe o que o acaso dá, então respire. Não foi sorte dele, tampouco azar o seu – certas coisas são porque são. Se o seu mundo é um conjugado do outro lado da rua, foi a vida que escolheu. Quem é que escolhe de onde vem? Quem é que decide para onde vai? Uma coisa ou outra a gente faz acontecer – o resto é mais forte, mais rude, menos doce do que um simples querer. O mundo não é mérito, menina, é privilégio. E enquanto você se dedica a polir pela décima vez a mesma bandeja de prata, o patrão empilha pratos sujos sobre a pia.
Prato sobre prato, louça sobre louça. A mão pesa de desejo. Um tapa e tudo se vai. Um tapa e louça sobre louça no piso gasto. Um tapa e de repente o mundo não é nem mais um conjugado ensebado sobre a casa de um velho louco – é rua, é chão, é cuspe na cara. O tapa não vem. Nunca virá, talvez.
Conta pra ele que a sua necessidade de ser ausente é um belo capricho. Que lhe agrada o não-ser, o não-existir fora das oito ou nove horas que compram seus sapatos bonitos e enfeitam suas pálpebras de uns muitos tons. Fala pro moço, que varre o chão por onde você passa, que gosta mesmo é de rir com todos os dentes e fazer piada da rotina e transformar em notícia o espetáculo da desgraça alheia. Ri. Engole bastante saliva pra ver se empurra glote abaixo o que está travado por ali.
“Mas você é uma moça atraente”, é o que dizem. É claro, pois sim. Espero que meus olhos tristes, mas bonitos, me salvem de mim, ela quase diz. Quase. Então sorri um sorriso largo e curva-se sobre a mesa. Coleta os copos, recolhe as gorjetas. Pensa que vale pouco demais quando enrola as notas de dois e cinco e as mete no decote. Vê-se nos pratos vazios. Sente-se preenchida de nada. E ainda faltam umas horas para o fim do dia. Dia, menos dia.
Deita-se na cama limpa. Funde-se com as cobertas brancas, pálida, magra, defunta. Sorri para o teto engordurado, tal teto de cozinha. A cozinha lhe cerca e acalenta. É o mais próximo de uma família que já teve, então aceita. Dorme um sono sem sonhos, nada de novo para quem já deixou de esperar – esperar o quê? Tudo, talvez. Dorme um sono de quem não sonha, e tão logo o despertador toca, e pensa: hoje vai ser diferente. A mudança não vem. Nunca virá, talvez.
Inspirado pelo texto A Cozinha, de Arnold Wesker.