Como eu sei lembrar de você


[Você pode ler este texto ao som de Trilhos Urbanos]

Quando tentava te esquecer, andava com amigos pela madrugada; ele estava com violão à mão, ela com Caetano na voz e eu era só ouvinte. Ele dedilhava as cordas enquanto eu acendia um cigarro, ela cantava “o melhor o tempo esconde, longe, muito longe, mas bem dentro aqui” e, enquanto eu deveria estar preocupado com a vizinhança chamando a polícia, a epifania do amor se derramou por mim, porque em mim você ainda morava. Como eu sei lembrar de você, menino.

Quando tentava te esquecer, escolhia entre as roupas que podia usar, olhando para o cabideiro com a paz cotidiana inventada por minha cama de solteiro. Fazia frio, todas as roupas sujas empilhadas sobre a poltrona e a camisa flanelada que você me deu, viva, limpa, parecia um convite: “vista-o novamente”. Não senti frio aquele dia. Como eu sei lembrar de você…

Quando tentava te esquecer, uns amigos me convidaram pra visitar sua cidade; eu disse “não” imediatamente, assustado, passando a evitá-los como um gato vira-lata foge da luz dos carros à noite. De fato, enquanto dirigia, umas noites depois, pensei se você, a minha curva aberta, a minha coisa certa, que não dá pra entender, seria constante na minha vida. Porque, meu deus, como eu sei lembrar de você.

Quando tentava te esquecer, parava pra encher minha garrafa com água da praça e lembrei da eloquência de você fazendo o mesmo quando nos vimos a última vez. Lembra? Conversávamos sobre um mundo e tudo parecia mesmo um roteiro de filme escrito pelas mãos de um escritor realmente habilidoso, com todos os recursos que aprendi na aula de roteiro I, e com um desfecho tão honesto que eu talvez ignore as lágrimas e tenha orgulho de tê-lo protagonizado contigo. Como eu sei lembrar de você…

Quando tentava te esquecer, alguém me recomendou ter raiva de você. E eu tentei, tentei com vontade, mas sempre soube estar machucado sozinho – e não porque você teve intenção. Sei lá, não ter por onde te culpar torna tudo ainda mais triste e é isso que dói mais. Agora eu só acendo um cigarro, tomo um trago e aceito, mas, meu deus, vai passando o tempo e eu ainda não te esqueci – como eu sei lembrar de você!

Quando tentava te esquecer, percebi que talvez quem eu tentava esquecer nem existisse mais. E isso me deu tanto medo, porque eu senti sua pele na minha e até a cor dos seus olhos era a mesma; mas se eu mal me reconhecia no espelho – “será que estes olhos são meus?” – como poderia dizer quem você é? Eu me apego ao que foi, porque tudo é bom de ver. E, como eu sei lembrar de você, descobri que amo o menino que conheci e me apaixonei por quem ele se tornou.

Quando tentava te esquecer, o mundo conspirava a teu favor. Perguntavam de você as mais estranhas pessoas, li “solitário esquisito” numa pichação de parede e pareceu um espelho, eu não sabia estar em outra companhia; você estava em todas as telas, em todos os sites, em todos os planetas. Até adotei um cachorro porque ele estava tão perdido quanto eu, triste e vazio pelas ruas, esperando por salvação e, enfim, a gente se encontrou. Enquanto ele pousava a cabeça na minha perna e me afagava com silêncios, eu me afogava em lembranças. Como eu sei, cara, como eu sei lembrar de você.

Quando tentava te esquecer, descobri que todo esforço seria em vão. Ainda vou cantar, triste, “bonde da trilhos urbanos, vão passando os anos e eu não te perdi”, e isso nem soa mais como sentença. Mas aí, grisalho de alma e libriano de muitos amores, sigo me perguntando: como posso seguir amando sem qualquer traço de cinismo?

Meu trabalho é me traduzir.

Pelvini

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