Boa viagem de volta pra casa


[Você pode ler este texto ao som de Space Oddity]

10, 9, 8, 7.
Escrever é derrubar um muro, Ziggy, eu sei que é. É mais fácil, dizem, escrever do que abrir a boca e deixar que as palavras pulem e façam o caminho até o ouvido do interlocutor. Que é menos pessoal do que uma escarrada, até pode ser – mas não sempre. Escrever é escolher como e se vamos querer arrancar sangue. Falar, volta e meia (quase o tempo todo), é não poder reformular a frase. Tem suas vantagens, até. Não é esse o ponto, de qualquer jeito.

Quisera eu, em qualquer momento da minha vida, ter podido te azucrinar com meu chororô instável. Como o tempo e esses nove mil quilômetros entre nós não me permitiram tamanha honra, escrevo por aqui mesmo. Um pouco por você, com certeza, mas especialmente por mim.

Vamos do começo. Foi mais ou menos assim: fui te dar atenção mesmo lá pelos meus quinze anos. Fui atraída pela forma como você ria mostrando todos os dentes e como erguia as sobrancelhas ralas – e eu só via verdade, verdade crua, verdade rude, verdade que escapava pelas mínimas frestas das suas roupas quase que embaladas a vácuo. Havia amor e violência em tudo o que saía de você (e eu descobri, desde cedo, que essas são as únicas coisas que eu consigo entender bem).

Como é estranho o quanto eu consigo me importar com uma pessoa sem nunca ter dividido uma tarde modorrenta com ela (porque, pra mim, amor tem muito a ver com compartilhar tempo improdutivo e achar que fez um grande investimento). Como é curioso o fato de que você, lá do topo do mundo, conversou intimamente comigo umas tantas vezes, tão mais do que várias gentes que eu vi por dias e meses a fio.

[Eu na cama e você do lado, mão no meu ombro. E nas caixas de som velhas, era a sua voz que declamava, quase que num tom de “reage, companheira”: amor, você não está sozinha. Você se analisa, mas você é injusta demais.]

Escrever também pode erguer uma muralha das mais intransponíveis, Ziggy. Eu construí dezenas delas durante toda a minha vida. Você não precisou de uma força descomunal para colocá-las todos no chão. E embora eu sempre desse um jeito de botar tudo no lugar pra conseguir sair e ficar intacta, eu sabia que voltar para você era inevitável – assim como era inevitável que eu me rendesse à forma como você falava e gozava de coisas que eu só conhecia em sonho ou que só me permitia visualizar em silêncio, com medo de ser ouvida ou mal interpretada.

Deus me livre que achassem que eu sou tudo o que eu sou mesmo.

[Todas as facas que parecem lacerar o seu cérebro – eu tive a minha cota e vou te ajudar com a dor. Você não está sozinha. Lembra? Eu lembro. E eu não estava sozinha, de fato. Eu tinha um belo marciano para me fazer acreditar que, no momento ideal, eu cairia de cabeça na atmosfera certa. Ainda não sei se a encontrei, para falar a verdade, mas desconfio que ela já apareça no meu radar. Não é bonito se encontrar, ainda que não muito?]

Os anos voam, moço, como os anos voam. Eu certamente não sou mais aquela menina que se apaixonou por você. O que eu sei hoje, com toda a certeza, é que você ainda é a mesma criatura por quem eu me apaixonei.

Não te trato no passado. Ninguém me convence de que você não é imortal.

Boa viagem de volta para casa – esse planetinha besta, tão aquém de alguém com o seu furor e apetite, foi só uma passagem. Seus caminhos vão universo afora, já que vieram de uma vielinha encantada de Marte. Eu, daqui da Terra, aceno (e espero, como a garotinha que eu fui um dia, que você me mande um beijo de uma estrela qualquer).

2, 1. Decolar.

Juliana

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