Ela queria voltar a ser aquela


Quase metade de uma vida adulta passada ao lado de alguém. Que agora já exibe fotos deitado de conchinha e recortes de um cotidiano com outra. Estranho mundo esse. Até porque não imaginava que gente de verdade postasse fotos pessoais dignas de ensaios “tumblr”.

Ela quis conter a labareda que subia pela garganta. Conseguiu. A onda de fogo retornou e lhe queimou por dentro.

Daí lembrou que havia repelido tantas vezes aquele protagonista das fotos com a outra. Aquele homem, agora estranho, já tinha se tornado um estranho faz tempo. Lembrou que a voz dele já lhe irritava há muito. Que seu simples andar pela casa já parecia tocar uma serenata de tampas de panela na sua cabeça.

Mas ainda assim, ele era seu. Mesmo que nos últimos tempos ele fosse mais o seu motivo de irritação, do que de um sorriso terno. Ainda assim, seu.

Estranhava como tudo soava só contradição agora.

Seria só sentimento de posse? Era pouco para explicar o sobe e desce daquela bolha incômoda por dentro.

Não sabia se queria ser ainda a protagonista dos pés entrelaçados, com aqueles pés com os quais dividiu a cama por tantos anos. Ou se queria estar agora de pés entrelaçados com outro. Ou se queria voltar no tempo. E se entrelaçar inteira com aquele a quem amara tanto nos anos bons. Voltar tempos atrás, quando os olhares ainda eram de afeto que fazia o coração bater feliz e inflado. E dizer dentro de um abraço que não iria partir, nem deixar o amor se partir, nem deixar que ele a partisse. Voltar a sentir o cheiro bom no meio dos cabelos e no pescoço dele. Voltar a ser aquela que só tinha razões para acreditar no amor.

Era isso. Ela queria voltar a ser aquela.

Ela não queria ser aquela que estava ali na foto dele de agora. Ela queria voltar a ser quem já foi. Aquela que ela não era mais.

A moça que nem pensava se acreditava ou não no amor. Ela só o vivia.

A moça que se via bonita no olhar bonito do outro. Que nem precisava pensar se esse era o seu jeito de se sentir amada. Porque era amada, e ponto.

A moça que não hesitava em dormir quando o sono vinha. E dormia a noite inteira. E sentia uma explosão suave (em câmera lenta, como um borrifo de perfume no ar) ao ver que aquele moço ali estava.

A moça que sabia que se sonhasse com coisas ruins, teria a quem chamar, mesmo que ele nem conseguisse acordar, sabia que lhe ofereceria os braços e voltariam a dormir, ainda que ela precisasse soltar algumas lágrimas mornas na camisa gasta dele. E tudo bem.

A moça que sentia que era de ser amada. Que não se olhava com tantas perguntas. E tanto medo de nunca mais.

A moça que não era confusão ao pensar em futuro. Não lhe doía pensar em sentir. Nem em pensar em não sentir.

A moça que tinha sentimentos vivos e coloridos, sem cacos nem desertos.

A moça que podia deixar a armadura de lado e tinha um recanto para respirar.

A moça que tinha problemas, sim. Mas gozava da possibilidade de partilha. Moça que não precisava enxugar sozinha os olhos e o rosto, nem se levantar de forma dura, dizendo que só tinha a si mesma com quem contar.

A moça que não tinha de se perguntar para onde o amor vai quando o amor acaba.

julianagarcia

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