Fui ensinada a obedecer


Fui ensinada a obedecer desde que me lembro.

Não acho que houve um momento qualquer em que tenham me dado a opção de não fazer isso.

Fique quieta, que você não sabe de nada. Não dê sua opinião, que você é nova demais para isso. Não reaja. Passividade também é política. Não fale desse jeito. Controle o linguajar. Não deseje. Não sinta. Não seja. Não brigue. Discorde educadamente. Seja branda. Fale baixinho. Agrade. Faça o possível para que gostem de você. Seja doce, não-combativa, apaixonadamente submissa. Todo mundo gosta de um bichinho dócil que aceita levar enganchada de espora no lombo sem dizer um ai.

Para isso tudo, honestamente, hoje eu digo: foda-se. Desse jeito delicado, sonoro, poético e lindamente articulado. Recebam essa rudeza arrancada do meu peito com as mãos em garras, como se fosse um buquê de rosas, e sintam na carne o tanto de enfurecimento que ela carrega. Surra demais caleja, e o resultado de tanta porrada é esse corpo duro de cicatriz. É um corpo bruto, esse que eu arrasto pra cima e pra baixo. Está enrijecido e puto da vida, diga-se de passagem – porque eu tive medo de ir contra o mundo por muito tempo, escondendo meus anseios em profundo silêncio, e a única coisa que recebi de volta por tanto esforço foi um tapinha no ombro e uma receita de tarja preta.

Anos de dores de garganta, ouvindo absurdos e não respondendo porque não posso, não devo, não quero. Imagina o que é que vão achar de mim, meu Deus do céu, se eu deixar escapar qualquer coisa verdadeira sobre quem eu sou? Quem é que vai gostar de tanta confusão e desatino, e aceitar meu jeito nômade e meio animalesco? Tudo o que me move o coração é coisa de quem não presta. Será que eu não presto?

(Um dia eu percebi que qualquer miudeza é motivo para que me cataloguem. Que ficar muda não me salva de olhares tortos, de comentários esdrúxulos, de julgamentos baseados em absolutamente nada. Foi um despertar doloroso, mas paradoxalmente maravilhoso; algo como roer o pé podre que estava preso na armadilha, sabe?).

Desde então, eu falo.

Falo quando me incomodo, quando não estou satisfeita ou quando algo me ofende. Resmungo quando estou enfurecida, quando fico severamente atraída ou quando me encontro com palpitações no peito. Falo pra caramba, e falo com palavrão, com eufemismo, com brutalidade, com a minha língua de navalha (você devia ver que bonito é o estrago que eu consigo fazer). Falo sem medo, bem alto se eu quiser, e o aborrecimento de outrem não me perturba mais a cabeça. Pois que venham com pedras na mão e que se zanguem à vontade. Que digam por aí, como eu sei que dizem, que eu não valho nada. Que eu sou uma bela de uma má influência, e que minhas companhias e atitudes e sobrancelhas arqueadas apenas comprovam esse fato. Que eu faço isso e aquilo e aquilo outro. Vou continuar fazendo. E rindo, aliás, de quem perde o sono com uma vida que não lhe pertence.

Já me arrancaram de mim muitas vezes. Não mais.

Juliana

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