– Você deu três voltas no quarteirão e não bateu a porta. Você voltou de fininho e nem tirou a minha camisa amassada. Você deitou de novo e fingiu que nem tinha acordado… Por que você decidiu não ir embora?
– Fui comprar pão, hora nenhuma pensei em ir embora. E, a propósito, seu leite está vencido, já passou da data há um mês. Comprei mais. Se é que você se importa. Não gostei de ontem à noite.
– Não gostou de mim ou do jantar? Eu não compro leite com frequência. Tô há uns dias sem tempo pra fazer compras. Tá vendo os números pendurados na geladeira? São de delivery. Mas diz… De mim ou do jantar?
– De tudo. Do lugar, da sua roupa, do seu cheiro. E sobre os números na geladeira, cansei deles também. Você anda muito distante.
– Eu ando por aqui, ué… Tenho trabalhado muito, te mandei uma mensagem e te liguei pra avisar que sumiria por um tempo. Meu cheiro é o mesmo, o lugar é o mesmo e a camisa é a mesma de sempre. Acho que você acabou enjoando de tudo em mim e não quer dizer que vai embora…
– Você sabe que ir embora nunca me foi problema. Aliás, se é que me conhece bem, já decorou que essa é uma das poucas coisas que faço com facilidade. Você não tem se importado mais. Essa cama tá muito pequena…
– Não é isso…é que eu realmente tenho ficado sem tempo e meio desorientado. Depois que você voltou, eu meio que me virei do avesso tentando consertar as coisas de antes. Meio que quis vestir uma capa de super homem por baixo da roupa, mas não tenho dado conta… E não é a cama que tá pequena. É que você cresceu e eu engordei um pouco depois que você foi. Quem disse que homem não passa por aquela fase de fossa depois que dá adeus?
– O que exatamente você quis dizer com as palavras “você cresceu”? Isso tá insuportável! E que música é essa? Desde quando seu toque de celular é esse? Céus, que calor! Não aguento mais! Você disse que ia dar certo, lembra? Você disse que a gente ia fazer dar certo! Eu não entendo porque não estamos fazendo isso! E que arranhão é esse aí?
– Calma lá… Vou abrir as janelas e você para de reclamar do calor. (…) Você cresceu e tal…sei lá, tá meio diferente. Meio feminista, meio decidida. Você era mais menininha antes de pegar o avião. Acho que a morte do teu pai te deixou meio intragável. Tanto é que você gostava desse tipo de música do meu celular antigamente e hoje em dia chama de “horrível”… Deixa o arranhão pra lá. Vou abrir o leite que você trouxe.
– Comprei de soja. Eu sei que você prefere integral. Comprei de soja pra te irritar. Acho que vou voltar pra casa da mamãe. E liga o ventilador, por favor. Eu juro, tento ter paciência com você, mas você não muda! É sempre essa sua barba mal feita, seus assuntos mal resolvidos. Você pelo menos terminou de escrever o livro que começou?
– O livro tá na cabeceira. Eu devia colocar o seu nome nele porque ele é todo sobre você e sobre quem você costumava ser. Se você for embora de novo, eu concluo. Se você não for, eu deixo guardado como uma espécie de ameaça pra você ficar. Você sabe… É meio que o meu laboratório. Não adianta que esse arranhão tenha sido feito por unhas vermelhas num dia incomum… Eu vou sempre escrever sobre você. E o leite tá horrível, meu bem.
– Acho que de todas as coisas que eu odeio em você, esse seu jeito calmo é a que mais me domina. Desisto. Quer torradas? Hoje tem jogo do Santos… Eu vi que você marcou na sua agenda que vai sair com os amigos. Sim, mexi nas suas coisas mesmo. Vi certos “compromissos” marcados e certos telefones que preferia não ter visto. Mas ah, desisto. Desisto de brigar com você e de ficar essa coisa estranha entre a gente. Quer torradas? (…) Tira o olho desse jornal, se concentra no que eu estou falando… Desculpa por eu ser assim, toda inconstante, ter esse humor complicado. Acho que minha menstruação tá vindo. Ou não, sei lá, meu ciclo tá todo errado. Deve ser um pouco por sua causa, você me tira de órbita, sabia? Ah, e eu comprei Nutella também. Eu sei que você gosta. Deixei na geladeira, do lado daquela sua lata de atum (que eu acho que também já passou do prazo de validade). E então, vai querer torradas ou não?
– Acho melhor você ir embora. Eu tenho que sair em 10 minutos e não quero usar esse tempo pra admitir que fiquei feliz por você ter voltado, mas que eu sei que a gente não dá certo. É só pensar no dia seguinte e entender o que acontece com a gente. Aposto que você tava indo embora com a minha blusa quando pensou duas vezes e voltou atrás. Vai ser sempre assim: um de nós vai sempre tentar ir embora e vai chegar uma hora que nenhum dos dois vai voltar atrás. Aposto que a sua menstruação desregulada é por causa dessa nossa instabilidade e do seu nervosismo. Eu vou jogar o atum fora e comer um pouco do que tem por aqui. E repito que é melhor você ir embora… Não quero ser grosso. É que. Você me desorienta e eu não sei se posso te garantir alguma coisa.
(…) Vou tomar banho e você pode ir embora. Ou ficar aí deitada para sempre e me fazer acreditar.
– Posso falar uma coisa? Sempre odiei essa sua tatuagem no ombro. E eu vou mesmo embora. Passar bem.
– Eu sabia que você ia desistir. E bate a porta dessa vez. Passar bem, meu bem…
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