Dê o play e ouça a narração da Olivia Dias
(Por Daniel Bovolento)
Eu também tenho uma âncora no corpo, sabia? A minha tá ali pra me lembrar de manter um pé no chão, senão eu vou. Vou embora e não volto nunca mais pro meu barco tatuado no pulso. E a tua âncora? Foi pra firmar o corpo na Terra ou é só um jeito menos traiçoeiro de te lembrar do peso de ficar por aqui?
Reparei também no teu pássaro e não sei se conto que troquei dois moços na mão por você voando quando a gente se conheceu. Você não saberia, não tem como saber, mas eu olhei e te queria, olhei de novo e não entendi por que tinha que ser ali, naquele dia, por que tinha que ser comigo. Muito prazer, eu quero você. Te ofereço um café e você recua, pergunto da sua vida e parece mais fácil sobreviver às 6h da manhã no metrô da Sé do que arrancar alguma coisa tua. É que eu já morei muito tempo longe, já vi muita coisa lá fora, você diz. E eu entendo que talvez eu seja tão passageira quanto as tuas andanças por aí.
Ponho os pés pra dentro de uma noite-que-tinha-tudo-pra-dar-errado e encontro você, bonito e cambaleante, como se dançasse balé sem saber rodopiar. Não deu tempo, mas eu fui por ti, não deu tempo, mas você foi por mim, não deu tempo, mas eu acho que consegui te dizer isso com cevada e saliva antes de você reclamar do tamanho da minha cama. Te dou um beijo de despedida e você recua, diz que vai pro outro lado, pra uma linha que eu não conheço. Até mais, meu bem.
Cê me chama pra jantar e eu digo sim. Abafo os rumores, penso em desistir, mas lá vou eu. Lá vou eu porque você me parece gentil e tem uma carinha de quem fala a verdade quando baixa os olhos, porque a tua voz também é gentil. Cozinha o meu prato preferido e eu até entendo o porquê do vinho branco deitado no sofá, até entendo quando você fecha os olhos enquanto a sua música preferida toca. É sono ou timidez? Acho que um pouco dos dois, acho que eu também sinto os dois. John Mayer no primeiro encontro? Espero que seja só o primeiro.
Vou embora e nem comento, mas senti um vazio tão grande na noite passada quando você virou pro lado e não me abraçou, quando eu voltei e éramos só eu e o apartamento vazio numa cama inteira. Nunca gostei de companhia durante o sono, nunca gostei de alguém além do travesseiro no meio das pernas e um edredom pesado, mas poxa, eu queria você. Queria tanto que achei que sairia dali direto pra casa e fim de história, queria e achava que tinha feito alguma coisa de errado pra você me esquecer ali do lado. Até que você levantou e me pediu pra esperar. E percebi que cafés-da-manhã são teu forte.
O cara do pássaro não sabe, mas ele é meio que o outro lado da garota com o barco. Os dois unidos por uma âncora. A do barco tem um traço pesado e obscuro, o do pássaro é mais sutil. A garota do barco gosta de vinho enquanto o cara do pássaro já dormiu. O cara do pássaro fala manso enquanto a garota do barco faz estardalhaço. E será que eles já perceberam que ambos têm uma âncora pedindo implorando explicando que só tá ali porque foi feita pra fincar?
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