Despedida torta


[Você pode ler este texto ao som de Por que você faz assim comigo?]

Dessa vez foi pra valer. Você ainda dormia profundamente quando a porta abriu com o vento. Me sentei sem fazer barulho algum e, sem pressa, procurei me recordar da maneira como havia encontrado você e a sua vida. Arrumei meu lado da cama (que ainda estava meio morno), ajeitei o travesseiro do jeito que você gosta, olhei mais uma vez para o sono que emanava do seu corpo – uma criatura que durante o dia esbravejava dentro de uma sala cheia de engravatados, cuja lábia poderia conquistar o mais endurecido caráter – e pensei em arrependimento por alguns instantes; não precisava ir, não precisava botar uma pedra nisso, não precisava deixar teu ombro, teus cuidados, teus bilhetes, teu café-amargo-com-gosto-de-água-suja (você nunca – nunca – soube fazer café, por mais que eu tenha lhe ensinado).

Tomei coragem pra levantar de vez da cama e, sem querer, acabei reparando também no seu peito descoberto, túmulo dos meus medos mais exagerados e descabidos (esses bem de mulherzinha, que você aturava por obrigação e bajulava com chocolates comprados de última hora), onde passei a última noite contando o número de vezes que ele expandia calmamente enquanto você respirava; analisei com cuidado cada músculo e me lembrei de como meus dedos percorriam fáceis esse caminho tão conhecido, e que cada vez parecia ter mais a ser descoberto. Senti meus braços formigarem, num momento de desespero do meu corpo pedindo encarecidamente para não sair daquele quarto nunca mais. Queria que fosse mais fácil me livrar dessa parte ruim que ainda insiste em nos separar, mesmo sabendo que ela é a principal fonte de combustível para os nossos reencontros. A outra parte, talvez imensurável e não tão horrenda, ainda queria ficar aí deitada sentindo seu coração bater, o ar com cheiro da colônia que te dei de aniversário, aquela coceirinha gostosa que a sua barba deixava depois de passear pelo meu pescoço desprotegido, mas essa insegurança que me assola toda vez que você sai de casa sempre fala mais alto. Não tenho pique nem ânimo para disputar você com o mundo, ainda mais quando eu mesma me sinto minha maior inimiga. Se você não tivesse estragado tudo tantas vezes eu não estaria agora pensando em fazer o mesmo.

Se você soubesse o quanto parece indefeso debaixo desses olhos de menino preguiçoso e atrevido, talvez o seu charme fizesse muito mais vítimas, assim como também fui. E nessa sua sutil fraqueza e inocência, por um instante, vi a minha própria espelhada. Enxerguei a mim mesma, aqui parada, ridícula e dividida, sem saber se lhe acordo com um tabefe – por ser tão cretino – ou com um beijo (pelo mesmo motivo). Quanto mais te olho mais as minhas dúvidas crescem e mais ainda a minha profunda admiração/desprezo pela sua maneira de me manter presa a você, mesmo enquanto tu dorme.

despedida3

Neste quarto abafado pelos meus pensamentos sobre o nosso querido passado, tipo aqueles escritos em papel bonito cheios de frases de efeito, me vi precisando abrir a janela pra deixar uma lufada de realidade limpar o ambiente e me permitir respirar alguma coisa que não fosse nós dois. O tempo vai passando, já é quase aquela parte da manhã seguinte em que você sempre some e ainda não tomei coragem pra sequer me despedir de você, algo com o qual já estou acostumada.

Poderíamos ficar nesse vai-e-volta interminável, na nossa equação perfeita cheia de variáveis tão constantes quanto as nossas discussões fora da cama, na química violenta ora ácida, ora básica, que acontece naturalmente; e tão naturalmente, depois do fim, descobrimos o quanto estamos nos machucando apostando tão alto em um jogo com tão poucas chances. Não demos certo uma vez, e outra, e mais outra; você tem suas prioridades, suas regras e exceções, seu jeitinho inato de cafajeste que combina perfeitamente com esse seu quase imperceptível desleixo com a vida – que acaba sendo um tanto quanto atraente – e eu, depois desses anos convivendo com o melhor e o pior de nós dois, acabei ficando com você, minhas expectativas e um desejo profundo de quero mais misturado com resignação e, quem sabe, um pouco de luto por saber que você ainda não presta, embora preste perfeitamente pra mim. Ainda sonho nossos sonhos, aqueles bem clichês mesmo, mas não consigo enxergar você sonhando comigo.

No fundo, eu queria mesmo é que você desistisse de mim, assim como desistia dos programas de domingos e feriados na maioria das vezes, porque facilitaria muito o restante do processo. Queria que você decidisse por nós dois, que você me deixasse aqui sozinha, sem um pingo de atenção, que você dissesse mais uma vez que eu mereço coisa melhor, quando na verdade mereço mesmo essa nossa confusão, dia após dia, porque é nela que a gente se sente ‘parcialmente’ feliz, que é nela que a gente se encontra, que é por causa dela que você vem bater na minha porta com esses olhos de cão abandonado. Porque é na nossa confusão de braços e pernas nessa cama que faz barulho pra cacete que a gente realmente percebe que o parcial não é tão ruim assim. E quando você acordar, sinta-se à vontade para me beijar com cuidado e ir embora na ponta dos pés, deixando um bilhete qualquer rabiscado em cima da mesa velha lá da cozinha e aquele seu café horrível na minha cafeteira.

Silvio

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