[Você pode ler este texto ao som de Shiver]
Atravesso na faixa e viro duas ruas antes do caminho que eu sempre pegava. Você se lembra bem, eu sei, que eu costumava passar por ali todos os dias e olhar pro prédio verde que tem uma magnólia na janela. Olhava, apontava, andava mais um pouco e pegava o ônibus das 9h pra dar tempo de chegar no trabalho. Mas faz um tempo que não passo por ali. No novo caminho que faço, passo sempre distraído olhando pra baixo, com um café numa mão e o celular na outra pra responder e-mails e notificacões inúteis. Finjo que já tenho o caminho alternativo decorado e ando sem olhar pra frente, esbarrando sempre numa placa e tropeçando num buraco na calçada à esquerda. O mesmo buraco, um novo tropeço, todos os dias.
Vou te dizer que o balanço do ônibus me incomoda mais. Incomoda porque no trajeto eu desligo o celular e fixo um olhar distante na janela. Volto em você. Na sensação que eu tinha de companhia ali do lado, dos sábados passeando de metrô por São Paulo, escolhendo no uni-duni-tê onde a gente almoçaria, brincando de bem-me-quer-você-me-quer contigo. Volto em você e me lembro da promessa de que você nunca mudaria – por mim e pela versão de você por quem me apaixonei. Eu prometi também, meu bem, e nunca mudei.
Deixo as roupas no varal, com sol ou com chuva, porque eu sou metódico e sigo as tuas instruções uma por uma. O passo um era pedir desculpas e entender um pouco melhor sobre fechaduras. Pulei a lição. O passo dois era fingir que eu não me incomodava com recaídas, que tava tudo bem por mim se você me quisesse de tempos em tempos, eu estaria disponível no cardápio volante do buffet. O passo três era não ligar, não mencionar, não me importar e reprogramar as minhas reações para serem inertes sempre diante de ti. Falhei miseravelmente. Até o dia em que você desapareceu do outro lado da estação e eu nunca mais vi teu contorno.
Entende, bem, que eu aceitei a ideia de você ir embora. Não era hora, tudo bem, mas era eu. Tenho certeza de que era eu e de que era o meu amor que você precisava. Tenho certeza que você dorme com o meu cheiro no travesseiro e isso te incomoda, que você vê umas fotos minhas no Instagram e não curte por receio, mas fica balançada. Tenho certeza de que eu tenho um espaço cativo ali, feito espinho na rosa do teu peito. E faço você se coçar, se arrepiar, soltar uns suspiros, se perguntar o que deveria fazer e baixar a cabeça pra continuar olhando em frente – porque você tem certeza de que fez a coisa certa em deixar pra lá.
No mais, eu tenho tentado refazer as coisas do meu jeito, sem seguir todos os jeitos que eu conheci com você. É bizarro, você não acreditaria em como é difícil se desfazer das manias de quem se ama, de como é complicado ir desconstruindo os costumes e as coisas que eram normais até ontem e hoje já não existem mais. Você mesma fez a mudança, não deixou nada que doesse, mas me deixou. Quer dor maior que essa? Dói em mim e eu te evito em cada canto. Não vou mais na mesma padaria, no mesmo parque, no mesmo cinema. Não penso mais em assistir os ícones porque, amor, não é por mal, é por mim. É uma tentativa consciente de apaziguar um pouco o que tá rolando aqui dentro e ficar em paz. Continuo tentando porque sei que não consegui ainda.
Ontem, por exemplo, eu tomei café mais cedo e decidi que refazer o nosso caminho era a melhor forma de provar pra mim que já tava tudo bem. Me arrumei, hesitei, peguei o café e o celular na mão só pra compor a paisagem. Passei direto pelas duas ruas que eu nunca via e entrei na do prédio verde com a magnólia na janela. Olhei uma vez e corri os olhos pro lado. Olhei uma segunda vez e nada, nenhum ploft mágico, nada pra tirar o smartphone da minha mão e pôr a tua ali. Percebi que não adiantava nada. Mesmo sem buraco na calçada eu iria acabar tropeçando. Porque eu ainda tropeço em ti.