Cuida de mim


[Você pode ler este texto ao som de Old Haunts]

Você não entende, mas eu peço abrigo. Um abrigo bem claro, bem na minha frente, que dissipe frio ou incômodo qualquer. Não entende e me olha como se passasse por mim na rua, como se a vista do horizonte fosse maior que eu, como se eu fosse uma alegoria trançada num adorno qualquer. Eu não peço esmola, eu peço abrigo afetivo de verdade. Queria mesmo é que você parasse pra perguntar como foi o meu dia. Foi bom, tô bem, eu digo. Bom e bem são sinônimos de toda crise interna que a gente não consegue afugentar, não acha?

Eu teria curiosidade em te conhecer abertamente. Te levaria prum quarto parado numa estrada qualquer pra te devorar. Ouviria as suas histórias e te pintaria nos meus escritos. Esboçaria um pouco dos teus olhos e das olheiras, que é pra te dar um ar humano, e reconheceria suas falhas no papel. Me pinta em aquarela pra me dar vida? Me tira daquele meu apartamento monótono que só faz de mim prisioneiro de alguma coisa apática, de uma vida que eu jurei pra mim mesmo que nunca viveria antes de guardar meus sonhos no baú e sair por aí vivendo o que a gente chama de vida. Tô bem, foi bom, digo quando o telefone toca. E na minha voz fica a marca dos trilhos rangendo, do peito rasgando, da carne se consumindo por dentro.

Bem e bom são sinônimos de um apocalipse pessoal.

cuida de mim

Você não me conhece, mas eu suponho que poderíamos ser amantes. Ou amadores. Sempre achei que todo amante tivesse algo de amador e por isso as derrapadas pelo caminho. Poderíamos também ser amigos e você me contaria da tua vida com frequência pra me arrancar da realidade? Eu te mandaria postais e a gente viveria nessa espera ansiosa de receber respostas. Promete pra mim que me escreve? Descreve, me escreve no papel, me rabisca um pouco pra eu sentir que não sou imaginado no mundo. Que eu existo e tenho uma âncora feito você pra botar meu pé no chão.

Eu te confesso que tenho um porão escondido dentro de mim. Vez ou outra eu revisito pra checar se a umidade já corroeu as vigas, as dobras das portas, as frestas do assoalho. Na maioria das vezes eu espirro por conta da alergia e não tem ninguém ali me oferecer um lenço. Tudo bem, sou precavido, tenho levado o meu há anos a fio quando aprendi que a gente tem que se embalar na gente senão a coisa toda despenca. Mas olha, eu faria do meu escuro um lugar bonito pra você me visitar. Limpo tudo e deixo as coisas boas em cima dos móveis e um porta-retrato de nós dois. Não precisa vir hoje ou nem amanhã. Só vem um dia e me tira dessa cidade perdida, dessa confusão que implica em me deixar com dois cigarros na rua e uns pensamentos que cortam, me tira desse conformismo absurdo e me afunda. Me afoga, me enforca, me joga do alto de um edifício, mas não me deixa viver essa coisa que não me deixa ver todas as coisas boas que os seus olhos castanhos contam.

Só vem um dia, larga as malas na porta, bota o pé pra dentro de casa e cuida de mim.

bovo

*Para fins de direitos autorais, declaro que as imagens utilizadas neste post não pertencem ao blog.

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