[Você pode ler este texto ao som desta versão de Brokenhearted do Karmin]
Reli meu texto favorito na noite passada – porque dormir com você assombrando o quarto já não dava mais. Tati Bernardi reclamou que o tal cara por quem ela era apaixonada tinha uma dor, uma daquelas dores que a gente cria com carinho e afeto, porque ela nunca tinha escrito sobre ele. Reli a odisseia de papel e tinta da prateleira e não me encontrei em nada seu. Do diário aberto em 97 até as folhas manchadas dum maio quente demais: nada. Você nunca se deu o trabalho de me poetizar.
Dos amores relidos, nenhum me transcreveu. Nem num pedaço-de-papel-de-pão-mofado pra rabiscar umas palavras e me dar aquela sensação de que se importa, de que aconteceu e não foi feito Big Bang. Eu não explodi do nada, sem registro nenhum, mas você me implode. Me implode dentro duma caixa de retalhos e me abandona num canto da rua – porque eu não tenho espaço na sua lixeira – e me deixa à mercê de sei-lá-quem. Renega e expõe a verdade sussurrada: eu nunca fiz parte de você.
Mas você.
Você que me entendia tanto e passava a mão nas minhas manias como quem diz que faria o mesmo, você que só ria de cabeça baixa e tinha vergonha do meu sorriso, você parecia capaz de me pintar em aquarela. De ir além da palavra-ditada e vociferar fonemas melodias poemas campainhas instalações e tudo mais de todo jeito sobre mim. Você, que me tinha sem vocativo e nem precisava explicar num contexto-aposto todos os meus lados opostos a mim, você deixou de falar de mim com tanta facilidade que me pergunto, sempre me pergunto, se eu ainda te lembro d’alguma coisa na vida.
E minha mágoa compartilhada com o amor perdido da Tati é a mesma. Você já escreveu sobre tantos outros amores sem peso e nem me colocou na balança (como se eu fosse peso morto). Me matou na memória sem forma e me deixou de lado de toda oração-futura que construísse por aí. Deixou de me deixar cair da boca quando falava ria brincava cantava sorria e todas as coisas boas e verbos bons que conjugou sem mim. Esqueceu-se das coisas que a gente falava e que a gente fazia e que a gente escutava e me esqueceu. Nem uma última menção antes de nunca mais voltar pra cá.
Mas você.
Nem uma citação sobre mim e o meu amor perdido-roubado que merecia lembrança pra provar que esteve ali. E mesmo que me matasse no final, me guardasse na gaveta, me errasse na gramática, me deixasse sem semântica, me pusesse num script rodado, eu teria amado – como ainda amo – a sua versão de mim.
(Inspirado em “A primeira vez” da Tati Bernardi)