Uma crônica breve sobre aquele sentimento de saudade


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[Você pode ler este texto ao som de Relicário – Nando Reis e Cassia Eller]

Mais uma vez ele viu o relógio mudar rapidamente de 6 para 7 os minutos da quarta hora da madrugada. Apesar da quase rotina, esse hábito ainda causava um certo desconforto; parecia haver hora certa para lembrar dela. Balbuciou o palavrão de sempre, estalou os dedos e procurou os óculos no escuro. Já previa a dor nos olhos antes mesmo de acender a luz, então decidiu descer a escada no breu mesmo. Abriu metade da janela, observou a chuva por alguns minutos, lembrou das noites chuvosas ao lado dela, lembrou do vidro embaçado e da música suave das gotas atingindo-o, lembrou do edredom roxo ou violeta ou púrpura – nunca soube qual a verdadeira identidade cromática do negócio e também não levou o assunto à ela – e do cachorro dormindo embaixo da cama. Lembrou dela, do sono dela, da maneira como os olhos dela se apertavam quando ela dormia, das asas redondas do nariz, dos lábios finos convidando-o para um beijo. Lembrou do cheiro da respiração dela e respirou profundamente, como que querendo encontrar tal cheiro no ar. Falhou.

Foi acordado do sonho-acordado por uma distante sirene de polícia, andou lentamente até o fogão e aqueceu uma medida de leite. Enquanto aguardava, reparou na quase dúzia de folhas de caderno escritas e rasuradas e espalhadas na mesa numa ordem que somente ele entendia. E nessas folhas, palavras que somente ela entenderia.

Sonhou de novo, e dessa vez com os vários bilhetes que escondeu pelo quarto dela, bilhetes recheados de pequenas juras e promessas e micro-elogios que arrancariam dela aquele sorriso que só ele conhecia, bilhetes assinados pela metade, que mostravam o quão inteiro ele era com a metade dela. Acordou novamente, dessa vez com o cheiro de leite fervendo, xingou a vaca, disfarçou muito mal um sorriso, terminou de preparar o capuccino e aqueceu a garganta com goles curtos. Era normal esquecer do mundo quando se lembrava dela. Era comum.

Largou a xícara na mesa, apagou a luz e, antes de voltar à cama, viu a luz amarela e deprimida de um poste atravessar a janela e repousar na cadeira ao lado. Como previsto, sentiu o costumeiro aperto no peito e também a solidão tocar-lhe os ombros. Tudo naquela casa lembrava dois, à dois, os dois, mesmo sem nunca ter existido dois naquele espaço. Repare bem: naquele espaço. A cadeira vazia servindo de repouso para o violão, o número de talheres e pratos e copos, a mesa redonda e pequena, o box do banheiro, a cama de solteiro (para dormirem mais próximos). Sentiu o chão gelado abaixo dos pés e desejou os pés dela colados nos dele. Voltou pra cama, olhou a foto dela na tela do celular, rezou por ela e reclamou consigo mesmo, com seu próprio deus, sobre as lágrimas que se acumulavam nos cantos dos olhos contra sua vontade. Alguns minutos depois da quarta hora da madrugada, ele tirou os óculos e os deixou no chão mesmo; ela não estaria ali para pisar neles meio que por engano. E como esperado, não dormiu.

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