Como anda a minha vida (ordinária) sem você


[Você pode ler este texto ao som de Draw Your Swords]

Ligaram hoje mais cedo de alguma seguradora qualquer. Perguntaram por você. Me reviraram inteiro ao pronunciar o seu nome com todas as letras e com a invasão típica de quem não sabe o que aconteceu. Ela está? Está. Ela sempre esteve aqui, até mesmo quando não estava mais. Infelizmente, você não pode falar com ela. Não vai conseguir encontrá-la em outro horário qualquer e isso já faz algum tempo. Eu também me pego pensando se ela deu uma saída e vai voltar mais tarde. Mas nem é balela de quem quer dispensar o telemarketing persistentemente chato. É só que ela. Ela. Você não está.

Eu continuo trocando os sacos de lixo religiosamente às seis. Só cortei o cabelo porque a sua mãe passou aqui na semana passada e praticamente me obrigou a reagir. Ando comendo bem também e até comprei umas frutas pra colocar na fruteira da sala. Não espero que alguém venha me visitar, mas você queria a casa sempre aberta e apresentável. Acho que entendem a minha dor como arrogância. Como se eu nunca tivesse tido o direito de sentar um pouco, trancar os cadeados daqui de casa e ficar sozinho. No escuro. Sem som nenhum. Até a dor ceder. Até adormecer. Eles confundem a necessidade de digerir tudo com solidão. Antes fosse só solidão e umas pílulas pra dormir. Antes fosse só insônia das brabas e umas sessões de terapia pra resolver. O que eu perdi não criou trauma, nem sequela aparente. É que não dá pra fingir que nada aconteceu ou que, pior, passou. Eu não passei, meu bem.

Eu convivo com a falta. Os meus demônios me deixaram aqui depois que você me deixou aqui também. As coisas quase pararam depois daquela terça-feira ensolarada. O dia tava ótimo e dava pra gente ter pegado uma praia, matar o trabalho, fugir dos celulares e tudo o mais que a gente costumava fazer. Mas não deu. Era uma terça-feira diferente num corredor estreito com o coração mais estreito ainda na mão. Quase precisei de um desfibrilador quando os médicos vieram. A visão apagou. A audição acompanhava um ritmo constante de quem tinha acabado de desligar o que me mantinha vivo. Deitei no chão e só acordei quando já tinham tirado você de mim. Se você fosse, lembra que eu não iria aguentar ficar aqui também?

Continuo assistindo aos mesmos programas e evitando dar de cara com as suas tomografias espalhadas pelos armários da casa. Não mudei nada de lugar e nem quero jogar nada fora. O que você foi, fica. Eu não quero esquecer, eu não quero tratar de seguir em frente. Porque eu tenho certeza de que eu seria uma pessoa pior pra mim – e pra você – se eu jogasse tudo fora, pintasse as portas, limpasse as botas… Sem você a falta cresceria mais ainda e me devoraria. Me engoliria a seco. De uma vez só. Sem nem respeitar a minha dor como os outros, que pisam em ovos quando falam do seu nome. Eles não gostam de me revirar. Só querem mesmo é me expulsar de você por alguma razão benéfica que a minha razão desconhece.

É só que, por favor, não me deixa aqui sozinho. Eu prometo não pular o muro do vizinho e prometo me comportar bem. Eu paro com as piadas de mau gosto, aceito me mudar pra alguma cidadezinha de campo e tiro a barba se você quiser. Eu paro de roncar, começo a beber menos cerveja e até assisto às novelas do seu lado. Te levo pra jantar naquele cachorro-quente que você queria conhecer, te empurro de supetão na piscina e faço a massagem de todas as noites por mais tempo. Eu vou me agarrar a cada parte de você e você vai até enjoar da minha cara, ou vai rir de como eu sou bobo, ou vai bater alguma foto espontânea da gente caindo no sofá, ou vai me dar um filho e a gente vai escrever um livro muito bonito sobre como tudo isso passou e a gente passou também e… A gente não passou, meu bem.

Posso falar com ela só um pouco? Pode, mas não demora. Ela precisa descansar? Ela não vai conseguir falar muito. Mas ela pode me ouvir? Pode, mas não demora. E eu continuo me lembrando de quando o médico me deixou sozinho com você. Foram as últimas três palavras que você conseguiu pronunciar antes de arfar um pouco e da enfermeira recomendar que eu te deixasse sozinha por conta dos sedativos. Foi o último beijo na testa e a última vez em que a falta não se fazia presente. E, depois da ligação de hoje e de terem me revirado por inteiro, eu vi que do avesso eu sou inteiramente você. E que a falta é o meu choro escondido vendo algum canto perdido na cidade. Tudo ainda é sobre você. Até mesmo essa minha vida, que era pra ter sido menos ordinária se você ainda estivesse aqui.

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