A minha camisa preferida se perdeu. Sofreu sequestro, na verdade. Você gosta de xadrez e isso é um problema pra mim toda vez em que a gente dorme junto. Agora a minha camisa dorme nas gavetas do seu armário novo com tantas outras roupas que não fazem parte do cotidiano dela. Ela deve estranhar essa variedade de tons e cores e a palheta arco-íris das suas combinações. E eu, que sou meio preto-e-branco, acabei entrando no seu espaço cor de rosa. A minha camisa se perdeu nesse infinito particular que é o seu quarto e eu me perdi junto.
E nem pensa em me devolver depois, não é? Porque você toma as partes de mim e as veste. Veste as minhas roupas como se fosse uma segunda pele. É que eu te aqueço melhor dessa forma, meu bem. E te dou conforto aonde quer você vá. Só que o mais interessante é que os nossos cheiros se misturam quando eu volto. Eu volto e abro o seu armário pronto para o resgate. Como eu tentei resgatar o casaco amarelo, o gorro cinza e a camisa de lã. Eu demoro um tempo dentro das suas coisas e quase não consigo me encontrar enquanto invado um pouco de você. Invado o seu mundo sem pudor algum e revelo seus gostos em cada peça de roupa espiada. Passo por cada gaveta com a calma de quem tem todo o tempo do mundo. Eu desnudo você sem tirar uma só roupa do lugar. E espio o seu futuro sem você nem saber. Já sei como você vai estar vestida em alguns dos nossos próximos encontros. Me benzo tentando me livrar da maldição de noivo que vê o vestido antes da hora. E continuo te espiando por baixo da saia, da camisa e de todas essas peças das suas gavetas.
Só que todo resgate é em vão. Quando encontro a minha peça, já domesticada pelos seus hábitos, ela não me pertence mais. Mesmo que vista a camisa xadrez, ela não tem mais a minha identidade e grita isso como se fosse um reclame da sua nova dona. É que a camisa agora tem o seu cheiro e o seu perfume é a minha melhor forma de identificação. Esse perfume me abraça e se mistura com o meu. É como se você me beijasse a nuca e passasse os cabelos no meu rosto. É como se você me despisse as roupas e me envolvesse com o sabor do seu perfume e do meu suor. É como se você tentasse me convencer arduamente a não te deixar ir embora enquanto os nossos cheiros se misturam. O seu perfume seduz com você. Não é ele sozinho e nem o aroma meio agridoce que ele inspira. É que cada cena nossa traz um pouco dele e cada roupa minha que tem o seu cheiro pertence mais a você do que a mim. Assim como eu. Cada vez que o seu perfume gruda em mim, eu sou teu. É que você descola cada parte da minha pele e usa do jeito que bem quiser. E o teu perfume fica.
E daí eu desisto de levar a minha camisa embora. Devolvo a peça à gaveta e fecho as portas do teu armário. Porque eu não posso te levar e te jogar num lugar qualquer. Eu tenho que deixar você nesse seu universo e vir visitar de vez em quando, sem nem precisar bater à porta. E nem precisa me devolver o seu perfume. Deixa essas roupas serem suas reféns e deixa que eu peço você inteira como recompensa. Eu perco mais uma peça, mas vale a pena.