Depois do fim


(Você pode ler este texto ao som de Stars – Changes)

O dia mal tinha virado e toca o celular. Era alguma amiga minha desesperada por botar pra fora todas as palavras feias conhecidas e desconhecidas que a gente precisa botar pra fora quando alguém fere a gente. Tinha terminado um relacionamento longo recentemente e desabafava. Acho que desabafar e respirar se tornaram as ações mais constantes dela, intercalados por breves conjugações de choro e lamentação.

– […] Mas Daniel, ele é um monstro. A gente só descobre como as pessoas são depois que a gente termina e pode ver de um outro ângulo quem ela realmente é. E ele é um monstro.

Papo vai, papo vem. Desliguei o telefone e me peguei pensando nesse trecho da conversa.

Não, ele não é um monstro e a minha amiga não passou longos anos se relacionando com uma farsa. Ela só conheceu um novo lado do rapaz e agora o considera um estranho conhecido.

A gente tem uma perspectiva curiosa sobre o outro num relacionamento. Consideramos que conhecemos todas as partes do outro, mas mudamos de ideia subitamente depois do fim. Parece que o outro se revela de uma forma surpreendente e nos mostra outra pessoa com quem nunca imaginamos conviver – e por quem nunca nos apaixonaríamos, juramos. O que acontece não é a súbita revelação da personalidade, mas uma constatação de que todo ser humano é uma construção maior do que uma única parte que conhecemos.

Quando a gente se apaixona e convive com o outro num relacionamento recíproco, é comum que as atitudes, as ponderações, as ações comedidas, os costumes e as palavras na troca sejam mediadas pela gentileza. O carinho pelo outro mostra o nosso lado mais sensível, mais caridoso, mais bacana de ser. Por isso que a gente jura de pés juntos praqueles amigos que insistem em fazer a cruz da tal pessoa que ela não é assim. E não é mesmo. A impressão e a forma como ela se mostra pra gente é totalmente diferente da forma como ela se mostra sem o efeito apaixonado e gentil da coisa toda. E o contrário também vale.

Basta avaliar as suas ações e reações. As suas explosões de humor são mais controladas, o seu bem querer do outro é sempre colocado na frente das suas reações espontâneas. Não é que a gente queira varrer a poeira pra baixo do tapete, mas acabamos por mostrar mais o nosso lado positivo. Tudo pelo senso de preservação da relação. Ou, diria eu, pela naturalidade que o status de estar apaixonado institui. Os nossos estados se alteram tanto que a espontaneidade fica em segundo plano. Ou, se considerarmos que as nossas concepções são redefinidas, a nossa naturalidade é modificada com aquela pessoa. Carinho e afeto podem fazer isso: alterar a nossa forma de tratamento com o outro, assim como nós diferenciamos o tratamento entre as pessoas que não gostamos e os nossos amigos.

Depois do fim, você acaba se desprendendo dessa aura bonita que inspirava a gentileza natural com o outro. Você não ignora mais as ações que hoje são taxadas de ignorantes, mal educadas, explosivas, inconvenientes e tudo mais. Não que antes elas não fossem, mas você não as considerava assim. Até as piadas sem graça de hoje em dia tinham graça naquela época. Justamente pela forma com que você via o outro e o outro te via. Com o distanciamento romântico, a gente acaba deixando essa aura bonita de lado, ainda mais se carregar alguma mágoa ou ressentimento do outro. E tudo o que a pessoa faz é vista com mais naturalidade, além das novas definições de espontaneidade, naturalidade e gentileza que a pessoa tem com a gente. As coisas mudam, embora nunca tivessem sido diferentes. É só a nossa percepção que muda de lado. De amantes a semi-conhecidos declarados em guerra. Quase a posição extrema ao que se sentia antes. É meio óbvio que você vá enxergar a outra pessoa de outra forma e que as ações dela não serão mais empenhadas em proporcionar o seu prazer e bem estar.

E isso só justifica uma coisa: a gente nunca vê o todo, mas as partes. Somos compostos por muitas partes que dependem de variáveis sentimentais e temporais pra que a gente entenda o outro – e nós mesmos – dentro de determinada perspectiva. Não é que você tenha convivido com uma construção fantasma que nunca foi real e agora a farsa se desfaz. O amor que tinha ali existiu, o carinho, o respeito, o afeto e tudo mais. E a personalidade bonita do outro era aquela mesma que só você conheceu e que os seus amigos nunca entendiam. Essa tal boa pessoa sempre existiu junto com a nova pessoa que você conhece. Mas agora você convive com mais essa parte do outro e admite a existência dos dois.

Da próxima vez em que você se pegar pensando que viveu ao lado de um monstro e nunca enxergou isso, considere o todo e não essa única parte que você viu. Justiça seja feita e as perspectivas todas devem ser inclusas na construção inteira de uma pessoa, tanto a parte boa quanto a parte ruim. Caso contrário, é melhor você se preparar pro choque de realidade se admitir a perspectiva da minha amiga: todos nós fomos monstros de alguém que se desencantou e descobriu na gente um fantasma e uma farsa.

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