Todas as coisas que desejamos e não podemos ter, voltam para nos devorar


Todas as coisas que desejamos e não podemos ter um dia voltam para nos devorar. Esta frase pode não ser minha – eu não tenho certeza se ela veio de alguma carta antiga, de um conto perdido nas gavetas, de uma frase rouca que me foi sussurrada ao pé do ouvido. Não sei qual foi o ventre que produziu tal parto: só sei que ela, essa quase-entidade que se tornou, me persegue e vigia há anos. Ela está no mundo lá fora da minha janela, assim como nas folhas dos meus cadernos, tanto os mais velhos quanto os mais novos. Toda vaidosa, passeia e rodopia pela minha boca entreaberta e arremessa-se da minha língua afiada quando eu menos espero que ela se manifeste. Não raro, grita nas minhas papilas, preenche os espaços da minha garganta, esculpe-se em mármore na minha memória gasta. Não lembro de muitas coisas. O mundo não me dá mais tempo de assimilar o mundo, com seu frenesi e as cobranças que eu certamente não posso atingir. As informações, vozes, rostos e histórias têm passado numa velocidade impressionante e, se presto atenção nelas agora, dois minutos depois já não sei bem o que ouvi. Se já fui inteligente algum dia, certamente hoje não sou mais. Os anos que foram me tornaram consciente da minha total estupidez.

Todas as coisas que eu desejei e não pude ter, no entanto, continuam a voltar. E me devoram.

Embora nada disso seja novo, sigo a perder pedaços a cada porta fechada e a cada possível amante que se desloca para longe dos meus dedos apaixonados. Se me convenci durante uns tantos mil meses que não havia nada em mim que exigisse presença, cuidado e permanência dos demais, hoje prefiro me calar. Há sim algo bruto e primitivo que demanda retornos e, especialmente, saciedade.

Não conheço bicho mais feroz do que a vontade de matar as vontades que arde em mim. Que vontades são estas, pergunto às vezes, e sei que o faço em voz alta apenas para me ouvir dizer: dela. dele. daquilo. de tudo. de tantos. de tantas. de muitas. de todas. de todos. O que rasteja por dentro espera sempre mais. Aquilo que se esconde por entre estas tripas é mais forte que o bombear do meu sangue, ele mesmo muito mais quente do que seria saudável para alguém em pleno juízo. Certamente não estou no meu. Não tenho certeza se já estive. Quanto do que há neste corpo ainda me pertence? Quanto do que resta aqui é soma das minhas faltas, das minhas negações, dos meus apegos ao que não era pra ser? Esta paixão autofágica, quem é que sabe para onde ela vai me levar.

Todas as coisas que eu desejei e não pude ter me tornaram eu. E elas continuam a voltar e a comer as partes de mim que eu não consigo mais manter. Se a vida me tornar mais cínica que isso, meu Deus, o que é que será de mim.

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