Noutro dia, um amigo queria ter um país só seu – algo um pouco ditatorial, não? -, meio Pink, meio Cérebro, meio Kim Jong-Un, e imaginava seu rosto estampado em muros, ovações desenfreadas e cânticos que o saudariam como um novo messias, jurando que chamaria esse país de Pasárgada, e eu, como seu amigo, seria amigo do rei. Alguém ouviu isso e se pôs a rir e fazer troça, bombardeando seu pequeno, megalomaníaco e poético país.
No elevador, um menino, certa feita, em sua infantil timidez, quando impelida pela mãe a responder a pergunta sobre o que queria ser, saindo do seu esconderijo imaginado, no caso as pernas da mulher que o gerara, disse que gostaria de ser ator. O homem que o ouvira, e que sofrera reprimendas de seu pai quando, ainda na infância, dissera que queria ser um plantador de batatas, lançou um olhar de reprovação, dizendo-lhe que deveria ser funcionário público, por questão de estabilidade mesmo, e então tomou seu ansiolítico antes de se despedir.
A garota, no auge de sua rebeldia adolescente, comprara uma guitarra e colara pôsteres de bandas de rock na parede oposta a sua cama, cantando aos quatro ventos seus anseios e vazando do seu peito diversos sentimentos em três acordes sem afinação. A mãe, já não aguentando a barulheira que parecia desgraçada aos seus ouvidos, disse que a garota não tinha qualquer aptidão para aquilo e que nunca teria, chamando-lhe em seguida para aprender um ensopado de carne que ela nunca conseguiu reproduzir da maneira que fora ensinada e que seus filhos odeiam.
Uma mulher, independente e solteira, com uma vida completa e sem qualquer infortúnio, tão livre quanto um bem-te-vi, empenhava-se por uma promoção em seu emprego que lhe daria a oportunidade de trabalhar no exterior, e era bem cotada para tal. O chefe, que passava o dia enfiado num paletó mal-ajambrado e se tocando durante vídeos pornôs de orientais enquanto fingia ler relatórios espalhados pela mesa, sabendo do desejo da mulher, massageou-a na altura dos ombros sugerindo que ele poderia assegurar de vez a tão sonhada vaga, contudo, foi confrontado sobre aquilo. A mulher viu no mês seguinte uma colega de equipe sair cabisbaixa e entristecida, ainda que sob uma chuva de aplausos, por ter conseguido a promoção que tanto sonhara. Desiludida, pediu demissão, nunca tocando no assunto com ninguém, e mudou de área.
Um ex-pugilista decidira levar um menino magricela para treinar em sua academia assim que ele se esquivou de um soco e lançou um contragolpe que levou o outro menino a nocaute na porta de uma escola de bairro com extrema naturalidade, vislumbrando nele uma pedra bruta que o levaria de volta aos seus áureos tempos e daria ao menino uma chance de ter uma vida também gloriosa. O menino, atrasado para seus treinos, sabendo que teria de pagar vinte flexões por conta disso, contrariou um aviso dado pela mãe de evitar atravessar por um lado de uma rua, porque a casa construída na esquina de forma errada tornara-se uma espécie de ponto cego para os pedestres, e fez a tentativa, a qual não foi bem sucedida por conta de um carro que descia a outra rua e o pegou em cheio, deixando-o paraplégico.
O pai de família, já um pouco calvo e com uma barriga que ele denominara “calo sexual”, contribuinte de uma previdência privada para os filhos, contratante de uma apólice de seguro de vida e dono de um carro confortável, aposentado, porém, ainda trabalhando para complementar a renda, portanto considerado dentro das estatísticas como mão-de-obra atuante, deu um tiro na própria cabeça numa tarde de domingo. Sua esposa encontrara uma carta na qual ele revelava para um rapaz vinte anos mais novo que ele não poderia conviver mais com aquilo, evitando ser quem ele realmente era.
Naquela noite, meu amigo dormiu e sonhou com o seu país.
Naquela noite, o homem funcionário público dormiu e sonhou com suas plantações.
Naquela noite, a mãe dos meninos dormiu e sonhou com sua própria banda.
Naquela noite, a mulher dormiu e sonhou com a prisão daquele chefe.
Naquela noite, o ex-pugilista e o menino dormiram e sonharam com a glória de serem campeões.
Naquela noite, os filhos dormiram e sonharam com o pai livre por aí.
No dia seguinte, todos despertaram mais tristes.
Eu confesso que acordei querendo escrever um livro, daqueles bem épicos, imortal não só pelas suas palavras magnânimas, mas por seu estilo inovador, além da densidade das personagens contidas nele. Não tive tempo e fiz uma crônica pessimista. As contas urgiam. E me pus a trabalhar para esquecê-lo, até que eu possa sonhá-lo de vez