Esqueça aquela história de cúpido


[Você pode ler este texto ao som de Cupid]

Passo todo santo dia por uma praça movimentada em que um músico toca alguma melodia bonita no saxofone e chego em casa com aquela sensação de que existe amor por aí. Você já sentiu como se existisse amor pra caramba por aí e isso fosse longe de você? Aquela sensação de que acontece pra todo mundo uma hora, daqui a pouco o cúpido acerta a flecha em alguém e o universo do dito cujo muda inteiro. Nunca parece que vai ser com a gente, não existe mais aquela expectativa depois de tanta espera. Mas acontece.

Pensei em te ligar mais cedo quando cheguei em casa e queria dividir a tranquilidade e dizer que tudo ia bem. Essa é a primeira vez em tempos que eu sinto vontade de ligar pra alguém quando chego em casa, só pra contar da vida e da melodia, perguntar como anda a sua e saber se dá pra gente almoçar juntos na sexta-feira. Prometo que ligo assim que sair de casa, prometo que aviso se for me atrasar, prometo que arranjo duas horinhas na agenda se você disser que a gente consegue se ver.

Depois de um tempo a gente percebe que fábulas de cúpidos e flechas não existem na vida real – e talvez por isso nunca somos acertados. Amor é construção, é um processo inteiro que envolve olhares, jantares, me liga mais tarde, te ligo, bom dia, boa semana, boa vida, bem vindo. Até acontece de a gente se apaixonar de súbito, claro que acontece, mas encaramos um universo de coisas antes de chegar a essa certeza e geralmente essa construção leva um tempo para a outra pessoa. As coisas não respondem com o mesmo tom de voz no lado de dentro dos dois peitos.

Caiu a ficha sobre isso quando me dei conta que eu precisei te enxergar doze vezes antes de perceber a falta de ar em toda vez que falavam seu nome. E é engraçado isso, porque eu já troquei uma dúzia de palavras com você antes, já te encontrei por acaso em uma esquina qualquer e sorri por pura gentileza sem notar a presença, já falei de você com outra pessoa reportando o discurso de alguém distante e perto de outro alguém, sem pretensão nenhuma nas entrelinhas, mas de repente dá o estalo. De repente a gente começa a enxergar um mundo inteiramente novo em que o centro das atenções passa a ser a outra pessoa.

Acreditar em cúpidos e fábulas e qualquer tipo de divindade que trate de colocar o amor no nosso caminho de uma vez por todas torna o estalo mais bonito. Sempre parece que acontece de uma hora pra outra, mas geralmente esquecemos de olhar pra trás e observar a construção. Nossos amores passados, cada passo que a gente deu e todo esbarrão desde a última vez em que juramos ter sido acertados foi fator decisivo nisso tudo. Acreditar que foi de súbito só deixa o barulho da ficha caindo com uma melodia um pouco mais romântica aos nossos ouvidos.

Bateu vontade de te ligar e convidar para andar na praça. Bateu aquela sensação de que a melodia fazia sentido e uma hora acontece com a gente também, uma hora a gente chega em casa com uma vontade tremenda de dividir a vida com alguém. Queremos colo, queremos afeto, queremos uma dúzia de problemas só pra dividir com o outro e atestar que vai ficar tudo bem. O que esquecemos é que essa vontade não surge de uma hora pra outra, mas vai sendo construída em todo fim de tarde que nos permitimos deixar o saxofone invadir os ouvidos na hora de assistir o pôr do sol.

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