Por dentro, eu acabo de morrer. Mais uma vez.


Nunca acreditei que a gente fosse pra sempre. Pra mim, ‘pra sempre’ sempre foi papo de novela. De casal recém-apaixonado, que ainda faz jantar à luz de velas, juras de amor e questão de dormir abraçado. De discurso religioso pra padre, coroinha e tia beata ver. E eu não sou dessas. Não sou fã de novelas. Nem moça que espera príncipe encantado, comportado e castrado a bordo de um cavalo branco. Nunca projetei a nossa felicidade num contrato assinado, numa casa com quintal e cachorro e filhos ou num anel de ouro que você me enfiaria no anelar.

Aliás, nunca projetei nada sobre nós – nem a possibilidade do fim. E foi aí que, no meio das nossas conversas, no meio da nossa bagunça religiosamente organizada, no meio dos nossos lençóis, me deixei iludir. Pela paz da nossa convivência, que era silenciosa mesmo quando enfrentávamos a típica tempestade que antecede a bonança. Pela sua mania de me sorrir e me dizer que estava tudo bem, por mais que eu sentisse algo minguando no seu peito dia após dia. Pelo aconchego que eu só encontrava no seu abraço, fosse para chorar uma tragédia ou gargalhar uma vitória.

Soaria herético dizer que a gente não foi bom. A gente foi bom, sim. A gente se fez bem, sim. Como arroz e feijão fazem bem pra fome, como sono faz bem pro corpo, como droga faz bem pra abstinência. Como uma simbiose. Mas você me escorreu feito água por entre os dedos. Suave, indolor, discreto. Tão discreto que eu sequer ouvi o implacável choque das suas botas contra o meu assoalho de madeira, caminhando cada vez mais para longe. Que eu sequer notei que a sua chave já não tilintava atrás da minha porta. Que eu sequer senti o cheiro da sua partida.

Acho que é porque partidas não têm um cheiro.

Mas têm um gosto. Que é amargo. E toma conta de tudo. Absolutamente tudo. Hoje minha boca está amarga. Minha pele está amarga. Meu colchão está amargo. O sol, que sempre me soou salgado, um misto de suor, sangue e lágrimas, hoje está amargo. Daqueles que pegam no fundo da língua. Que provocam calafrios quando descem pela garganta. Que causam vertigem quando batem – e voltam – no estômago.

Não sei se foram as minhas ou se foram as suas, mas as mãos de alguém fizeram a nossa receita desandar. O leite coalhou, o sal hidratou, o molho azedou. Okay, não era para ser pra sempre. Mas também não era para ser assim, quase um ‘pra nunca’. Ou talvez até fosse. E eu que não quis acreditar. Sabe aquela história de cegueira seletiva? Pois então. Eu só via os outros se afogarem na tempestade. O vendaval só destelhava a casa dos outros, a chuva caía sobre o mundo todo, menos sobre mim. Eu só via o mundo dos outros ruir. Enquanto o nosso, pendurado por um roto fio de náilon na beira de um abismo de quilômetros de altura, me parecia aconchego, acalanto. O lugar mais seguro do mundo.

Mas não era. E talvez nunca tenha sido.

O fio rompeu. E agora que o nosso mundo caiu, por favor, não tente reerguê-lo. Você pareceria desesperado, afoito, ridículo. Patético. Não enxugue minhas lágrimas, não me estenda os braços. Não me ofereça um café quente, não se sente ao pé da minha cama. Não me olhe com piedade, não acaricie os meus cabelos. Não me dê um último beijo, não me escreva uma carta de adeus. Não me ligue daqui a uma semana para saber como eu estou. Não me devolva aquele cachecol que eu lhe emprestei no dia mais frio do ano passado. Não tente me fazer rir, não tente me fazer parar de chorar.

Apenas me deixe fluir. Sou muita vazão para ser amparada pela sua mão trêmula e hesitante. Apenas me deixe contemplar o abismo. Sou muita loucura pra não me jogar de cabeça no fundo do poço. Apenas cave a minha sepultura. Porque, por dentro, eu acabo de morrer. Mais uma vez.

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