Antes de começar o texto propriamente dito, queria propor um desafio para quem estiver lendo. Quantos personagens bissexuais você lembra de ter visto na televisão? E no cinema? Nos livros? Quantas vezes os jornais ou revista falaram do assunto? Quantas vezes sua professora de ciências falou sobre bissexualidade na escola? E seus pais? Pois é. No ano passado, durante a 19ª Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, lembro de uma coisa ter me chamado atenção. Um dos inúmeros trios trazia a seguinte inscrição: “Em defesa de gays, lésbicas e transexuais”. Era minha primeira vez na Parada e fiquei me perguntando o que eu estava fazendo ali. Esse exemplo ilustra basicamente como a questão bissexual é tratada hoje. Basicamente, ela não é tratada. Quase tudo sobre bissexualidade que sai da esfera de discussão das próprias pessoas inseridas nesse grupo é baseado em senso comum. E o senso comum é um baita problema.
Comecemos então o texto. Uma vez eu tive uma conversa com uma amiga e ela me falou o seguinte: “Não sei qual é a disso de bifobia. Bissexuais não sofrem violência de desconhecidos na rua por serem bissexuais, mas por serem lidos como homossexuais. Ninguém vai dar uma lampadada na cara de um rapaz acompanhado de uma mina, só vão fazer isso se ele estiver com outro cara, ou seja, se for lido socialmente como gay”. Pois sim. Minha amiga está certa nesse caso, mas errada no contexto geral da coisa. Vamos lá, para tentar deixar as coisas mais claras, vou colocar alguns pontos gerais que podem ser importantes para entender onde quero chegar com esse texto.
Todos nós vivemos em uma sociedade que impõe alguns valores de forma compulsória. O que isso significa? Que somos orientados desde que nascemos a nos manifestarmos segundo algum padrão, independente dos nossos fatores individuais. Um desses valores é a heterossexualidade. Crianças não são criadas para descobrir a própria orientação, elas recebem sinais a vida inteira de que a única via possível é a heterossexualidade. É o que todos esperam dela. Não é por menos que gays e lésbicas precisam “se assumir” para os pais e para os amigos em algum momento da via. É um sistema que diz que você precisa declarar não ser algo que você mesmo nunca disse ser, mas que disseram por você durante sua vida através de um conjunto de expectativas empurradas pela sua goela.
Só que a heterossexualidade compulsória é formada por vários outros valorezinhos. Um deles é a monossexualidade, que nada mais é do que um indivíduo sentir atração por um único gênero. Logo, se você é heterossexual, você é monossexual. O problema dessa coisa toda é que mesmo quando o indivíduo subverte a noção de heterossexualidade como via única e passa a registrar a possibilidade da homossexualidade, a monossexualidade continua ali. Cria-se um modelo dicotômico onde ou você é gay, ou você é hétero. E aí começa o inferno na vida de quem está abrigado debaixo do guarda-chuva da bissexualidade.
Voltando lá nas aspas da minha amiga, ela está certa quando ela diz que um bissexual vai sofrer homofobia quando for atacado por um desconhecido por estar de mãos dadas com alguém do mesmo gênero. Dentro do modelo social dicotômico, ele foi lido como homossexual, apesar de não ser novidade para ninguém que existam pessoas bissexuais. Ninguém anda com uma placa escrito “bissexual” na testa e, mesmo que andasse, não ia resolver o problema da invisibilização bi. A violência que uma pessoa sofre por se relacionar sexual e afetivamente com alguém do mesmo gênero é homofobia. O que as pessoas bissexuais chamam de bifobia é todo o conjunto de agressões que as atingem em função da não-monossexualidade delas. E é difícil para muita gente entender isso porque quando eu falo de agressão, nesse caso, estou falando principalmente do tipo que opera no psicológico − e é tão letal quanto a famosa lampadada.
Um estudo feito pela London School of Hygiene and Tropical Medicine mostrou que, em comparação com mulheres lésbicas, as bissexuais têm 64% mais chance de desenvolver transtornos alimentares, 37% mais possibilidade de cometerem violência contra os próprios corpos, 26% mais probabilidade de terem sofrido depressão nos últimos anos e 20% mais chance de terem sofrido ansiedade no ano anterior. O relatório norte-americano “Bisexual Invisibility: Impacts and Recommendations” aponta que homens e mulheres bissexuais pensam mais em suicídio do que gays, lésbicas e heterossexuais, além mencionar que bissexuais possuem maior probabilidade de desenvolver depressão, ansiedade, hipertensão, tabagismo e alcoolismo do que a galera monossexual. Assim como esses dois, existem trocentos outros estudos mostrando que pessoas bissexuais sofrem prejuízos específicos. E para deixar os motivos disso mais claros, eu vou usar ainda outra pesquisa.
Nos Estados Unidos, pesquisadores observaram um cenário interessante relacionando local de moradia, transtornos psicológicos e orientação sexual de mulheres. O estudo apontou que, em áreas rurais, os níveis de transtornos psicológicos entre mulheres lésbicas e bissexuais eram bem semelhantes. Porém, quando passaram a observar os mesmos níveis em áreas urbanas, eles notaram que os índices melhoravam consideravelmente para as lésbicas ao passo que pioravam para as mulheres bissexuais. O motivo disso, de acordo com a própria pesquisa, é que mulheres lésbicas encontram apoio nas comunidades de gays e lésbicas, mais estruturadas nas cidades, ao passo que as bissexuais continuam se sentindo isoladas.
É muito difícil viver em um ambiente onde sua identidade é negada o tempo inteiro e você é empurrado para um extremo ou outro. E é, no mínimo, desonesto falar que não existe bifobia quando claramente há um padrão de sequelas de violência psicológica dentro de uma parcela significativa desse grupo de pessoas. Pessoas bissexuais acabam tendo mais dificuldade em se sentir parte de uma comunidade em função da resistência que a sociedade tem em simplesmente aceitar a existência delas. Falar que bissexuais estão passando por uma fase, estão em transição, estão em dúvida, não tem coragem de se assumir inteiramente, ou qualquer coisa do tipo é o que cria um ambiente de extrema insegurança tanto dentro de grupos heterossexuais como na própria comunidade LGBT – onde, inclusive, muitas vezes só o G tem voz ativa.
Ser bissexual é estar o tempo todo sendo obrigado a reforçar a própria orientação. É estar em um relacionamento com uma pessoa do mesmo gênero e ouvir das pessoas em volta que você finalmente assumiu a homossexualidade, que a fase de dúvida passou, que você não está mais em cima do muro. É estar em um relacionamento com uma pessoa do mesmo gênero e ser questionado pela própria se você não sente falta de transar com alguém do sexo oposto. É estar em um relacionamento com alguém do gênero oposto e ser chamado de enrustido, ser tratado como alguém que não teve coragem de sair do armário. É estar em um relacionamento com uma pessoa do gênero oposto e ver que ela própria tem dúvidas se não está sendo usada como fantoche social. O pensamento monossexual trata o sexo como se ele fosse um esquema fordista em que só existissem duas linhas de produção: sexo com homem ou sexo com mulher. Como se o sexo não fosse repleto de singularidades de pessoa para pessoa.
O pior é que pessoas, sobretudo as que não são bissexuais, costumam engatar um debate sobre o que é bifobia, se é preconceito ou se é opressão. Essa discussão me lembra os não tão saudosos tempos da faculdade onde a galera do Centro Acadêmico perdia meia hora antes de cada encontro deliberando se aquele aglomerado de pessoas era uma reunião ou uma assembleia (juro que isso acontecia). O que eu sei é que, antes de qualquer academicismo que só serve para inflar ego e perder tempo, a violência psicológica que atinge bissexuais é uma coisa terrível e que precisa ser problematizada. Da próxima vez que alguém se definir como bissexual para você, não faça questionamentos sobre a autodenominação dessa pessoa. Ao invés disso, questione o quanto suas próprias noções de orientação sexual foram condicionadas a vida inteira pelo seu limitado meio social. Na pior das possibilidades, isso vai fazer de você um ser humano mais lúcido. Na melhor, bem, talvez você tenha uma grata surpresa.