[Você pode ler este texto ao som de I’m Into You]
Entra sim, não estranha a zona – não, não acabei de me mudar. Na verdade, estou aqui há oito meses. É que eu tenho tido essa necessidade avassaladora de tirar tudo do lugar e reordenar meus móveis, meus santos, meus livros. Dei muitos livros nos últimos tempos. Coisas. Sim. Dei aquele livro que você me deu, eu admito, mas não foi por mal. Eu já li tantas vezes, você sabe, eu queria que alguém tivesse a oportunidade de ler também. Rasguei a dedicatória, não se preocupe. Ninguém sabe das coisas enormes que você me prometeu e não cumpriu – quê? Eu não disse nada. Só comentei que guardei a dedicatória. Virou um marcador de livros que eu não li. Não é o mesmo sofá no qual você costumava deitar, eu tive que comprar outro depois que aquele… quer um café? Posso fazer um café, está um pouco tarde, eu ando meio cansada, limpei e arrumei tanta coisa hoje. Posso servir? Aqui. Deixei sem açúcar, como você gosta. Suponho que você ainda goste sem açúcar, quer dizer, o que é que eu sei? Esse bibelô da estante foi obra da minha mãe, é verdade, eu o acho bastante engraçadinho. Não. Não posso te devolver aquele quadro que você me deu, desculpa. Eu gosto muito dele e não quero que você o tenha de volta. Direito seu? Você tá de sacanagem? Você me deu de aniversário e meu aniversário já passou. Agora ele é meu. Ficam os dedos, vão os anéis. Ficou o quadro, foi embora você correndo da minha antiga casa, tropeçando nos seus sapatos bicolores, de nariz escorrendo e cara de quem aprontou e não tinha peito pra assumir a molequice. Não devolvo, pode fazer a cara que for.
O incensário é bonito, é do menino que mora comigo. Ele também gosta dos meus misticismos. Ao contrário de você, não fica tentando me convencer de que deus não existe o tempo todo. Não, eu não acredito no deus católico nem nessas coisas todas que me ensinaram durante boa parte da minha vida mas sabe, olha que engraçado, nos últimos tempos eu realmente comecei a acreditar que tem alguém olhando por mim e tem alguém segurando a minha mão quando eu estou muito perdida. Sabe que eu voltei de uma festa esses dias e eu estava muito mal e parei em duas ou três estações de metrô para beber água, respirar e chorar de leve e um homem de repente me abordou e pegou no meu braço carinhosamente e me disse que eu era linda e que eu não deveria chorar por motivo qualquer que fosse? Ele estava muito bêbado. Foi a coisa mais bonita que eu ouvi em muito tempo e veio de uma pessoa que eu nunca mais vou ver na vida e estava tão disposta a me fazer feliz que eu voltei feliz pra casa.
O que isso tem a ver com acreditar? Deixa pra lá. Você não entenderia nem se eu desenhasse pra você. Não, não precisava ter tirado o sapato, desde quando você dá a mínima pra isso? Que se dane se eu fiquei esfregando essa bosta desse piso branco por uns vinte minutos essa tarde pra você socar a sua bota nele. Não, não tira agora, não precisa, já tá feito. Não. Espera um minutinho, eu coloquei mais água pra esquentar, você quer mais café? Eu não estou bebendo mais, obrigada. Tudo bem. Sabe o motivo pelo qual eu não vou te devolver o seu quadro? Porque eu queimei aquela porcaria. Queimei mesmo, e ainda cuspi em cima. Com ele, se foram as suas cartas, aquela fotografia nossa que você mandou emoldurar, o livro meloso que você me dedicou – vá para o diabo com a sua iluminação, a sua insustentável leveza do ser, o seu papo de estudante cheio de afinco. Você, todo metido a filho de Buda. Me poupa dos teus mantras que são só da boca pra fora e sai. Carrega suas botas enlameadas pra longe do meu pobre tapete. Carrega seu corpo de chacras alinhados para o raio que o parta.
Cuidado para não tropeçar na mesa de centro enquanto vai. Me deixa aqui em paz com meus móveis, minhas poltronas, meus poucos bens – bens que você critica, nessa sua mania de espírito desapegado das futilidades humanas. Tanta filosofia pra quê, meu Deus, me explica: PRA QUÊ, se você nunca usou nada disso para porra nenhuma. Tantos livros lidos e rabiscados, tantas anotações existencialistas nas paredes do quarto, depois o budismo, depois o hinduísmo, depois a nova era, depois o grande nada e o papo do amor. Mas o amor é só uma emoção, o que são emoções, sentimentos são impulsos a serem controlados – desculpa aí, meu bem, mas eu sou toda emoção. Eu só trabalho com ela, eu só vivo com ela. Eu sou um turbilhão de patifarias e não faço a menor questão de não sê-lo. É isso. É isso, sim. Faça a gentileza de não bater a porta, que o gato se incomoda com o barulho. Namastê pra você também.