Sempre acompanho premiações de cinema. Desde criança ficava de olho em quem ia levar melhor filme, vibrava quando meu longa de animação preferido ganhava. Com o tempo, isso virou tradição de amigos e, hoje em dia, sempre acabo indo dormir tarde em dia de entrega de estatuetas. No Globo de Ouro de 2016 não seria diferente. No dia 10 de janeiro, tomei banho mais cedo, terminei as coisas que tinha para fazer e fiquei esperando o começo da cerimônia. Já tinha visto uma boa parte dos filmes, alguns deles graças a cabines de imprensa. Mas, indo direto ao ponto, o lance é que essa premiação me deixou com um leve desconforto, que foi crescendo à medida que os ganhadores eram anunciados.
Para começar, Rick Gervais voltou a apresentar a premiação. O cara esteve à frente do prêmio entre os anos de 2010 e 2012, quando foi substituído pela dupla de mulheres – maravilhosas – Tina Fey e Amy Poehler. Antes de subir ao palco, o cara já tinha avisado que estava se preparando para ofender “quem não tivesse senso de humor”. Durante o prêmio, Gervais expôs Mel Gibson ao ridículo ao debochar de seus problemas com álcool e deu uma demonstração de transfobia ao chamar Caitlyn Jenner de Bruce. Além disso, o cara fez comentários falocêntricos, ironizou crises conjugais, fez piadas xenofóbicas com atrizes latinas e direcionou comentários machistas à JLaw.
Eu lembro de Tina Fey e Amy Poehler fazendo outro tipo de brincadeira. Eu lembro que, quando George Clooney ganhou o prêmio Cecil B. DeMille pelo conjunto da obra, elas ironizaram o fato de sua esposa, a advogada especializada em Direitos Humanos Amal Ramzi, ter inúmeras qualificações incríveis e ser tratada pela mídia como “a esposa do George Clooney”. O ator, inclusive, engrossou o coro e falou do orgulho que sentia de ser o marido de Amal. Na edição de 2016, o que eu vi foi um homem branco cis-hétero disparando grosserias e fazendo comentários de mau gosto. Não, não eram piadas. E, claro, com um copo de cerveja na mão o tempo todo. Um clichê do tamanho de um elefante branco.
Mas, para ser sincero, olhando a premiação do ponto de vista dos troféus entregues nas categorias de cinema, Rick Gervais retratou bem a edição 2016 do Globo de Ouro. Vou enumerar algumas coisas que me deixaram com a sensação de ter alguma coisa desagradável no estômago.
Tínhamos um filme que fala sobre um romance entre duas mulheres na Nova York de 1950. Carol tinha cinco indicações e, entre elas, duas na categoria Melhor Atriz de Drama, para as já elogiadíssimas atuações de Cate Blanchett e Rooney Mara – essa última tendo levado, inclusive, o prêmio de Melhor Atriz do Festival de Cannes 2015. Um filme que fala de uma história de amor abafada pelos valores preconceituosos de uma sociedade LGBTfóbica e misógina que eram ainda mais fortes no período retratado. Um filme que é um tapa na cara de muita gente ao mesmo tempo em que conta uma história de amor transbordante. Não levou nenhum prêmio.
Tínhamos um filme sobre a primeira cirurgia de readequação de gênero registrada na história. Com três indicações, A Garota Dinamarquesa é uma cinebiografia de Lili Elbe, designada Einar Wegener ao nascer. Um filme visualmente maravilhoso: as duas principais personagens viviam de pintura e a produção do filme tentou transformar cada cena em uma tela. Luz perfeita, cores perfeitas, uma beleza que chega a fazer o espectador perder a concentração na história. História maravilhosamente bem encenada por Eddie Redmayne e Alicia Vikander. O filme também não ganhou nada. E coloco minha mão no fogo que não foi por boicotarem o longa em função de os idealizadores do filme não terem aberto espaço para uma mulher transexual interpretar Lili Elbe.
Tínhamos um filme sobre o processo de apuração de uma matéria que denunciou a forma como a Igreja Católica varria abusos sexuais infantis para debaixo do tapete. Tínhamos um filme sobre o pós-Guerra Civil nos Estados Unidos, que abordava a herança racista no comportamento das pessoas. Inacreditavelmente, não tínhamos nenhuma indicação para um dos melhores filmes que vi nos últimos tempos, Sufragistas, que traz Carey Mulligam arrebentando no papel de uma mulher que luta pelo direito de poder exercer o direito político do voto.
No fim das contas, o Melhor Filme foi para um que contava a história de um homem do século XIX, com ares quase primitivos, que é atacado por um urso, abandonado por um amigo e luta por vingança. O Regresso saiu de lá consagrado com três prêmios. Não que o filme não seja ótimo e que Leo DiCaprio não seja merecedor de glórias. Claro que é. Mas não é no mínimo curioso o quanto esse cenário de filmes vitoriosos e derrotados reflete de forma tragicômica a nossa própria sociedade? Além disso, o prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante foi para a – talentosíssima – Kate Winslet, que ganhou o troféu pela atuação na cinebiografia de um homem. Não sei se existe mais o que possa ser dito.
Pelo menos, tivemos Jeniffer Lawrence levando a estatueta de Melhor Atriz de Comédia ou Musical, pelo trabalho em Joy: O Nome do Sucesso. Deu um gostinho bom ver JLaw fazendo o Rick Gervais engolir as piadinhas sobre a militância dela pela igualdade salarial ao ser premiada por contar a história real de uma empresária de sucesso. Mas foi pouco ainda. Terminei de ver o Globo de Ouro com uma única certeza: se ainda incomoda muito ver minoria sendo empoderada no dia a dia, imagina quando isso acontece no cinema, em uma tela daquele tamanho.