Pra tirar você de mim


Alguns meses sem te ver. Você atende poucos telefonemas, me responde meia dúzia de mensagens, não prolonga as nossas conversas. Eu te digo algumas coisas, também breves e escassas – acho que por medo, acho que por ânsia, acho que pelas duas coisas -, mas saiba: eu contei os dias. Eu contei todo e cada dia, ansiosa para ver seus olhinhos opacos e o rosto que eu vi murchar uns tempos atrás.

Viajo horas com a minha malinha (quantas viagens, de repente penso, quantas viagens entre nós?). Chego exausta, mas meu peito canta enquanto eu subo as escadas. Te encontro pequeno, encolhido, enrugado. Sufoco meu choro quando paro no batente da porta. Em meio aos lençóis, miúdo e magro, você não parece você. Eu conto os nós das suas costas envergadas, analiso as suas costelas pronunciadas, olho a cicatriz e seguro. Não posso apertar meu rosto contra o seu ombro ossudo. É a primeira vez que eu acho que você pode mesmo quebrar.

Seguro. Queria ser o seu porto, seu remo, sua terra firme. Preciso ser.

Seguro. Respiro. Visto meu rosto brando, transfiro o pranto para os meus punhos fechados, bem escondidos atrás dos meus quadris. Sorrio e esse sorriso, apesar de pálido, é sincero. Eu digo seu nome, confirmo que são pouco mais de sete da manhã – faço piada. Faço cara de quem não viu nada.

Te observo levar vários segundos até me reconhecer. Me dá uma vontade louca de gritar, de reverter o tempo – de me encontrar de repente com o joelho ralado e com você cuidando de mim, me distraindo para conseguir jogar Merthiolate ardido na minha ferida aberta (quantas feridas abertas, de repente penso, e eu queria que nenhuma delas fosse literal). Retornar às tardes em que você sentava comigo na sala, com a porta escancarada, e bater na sua mão até você derrubar o cigarro.

Eu sempre gostei de cigarros, sabe? Gostei mesmo. O cheiro, por mais estranho que pareça, sempre foi agradável para mim. Tinha cheiro de casa. Hoje eu não gosto mais, mas às vezes pego um filtro entre os dedos pra lembrar de você e te sentir mais perto. Te sentir melhor, de certa forma, apesar de agora achar que toda e qualquer fumaça fede a hospital.

Seguro. Você anda devagarzinho, a mão pousada sobre o ilíaco pronunciado, e deixa escapar uma lágrima quando eu me sento à mesa com você. Quantos meses, de repente penso, quantos meses entre nós? Eu entrelaço os nossos dedos e eu não sei, eu não faço a menor ideia de como eu aguento ficar lúcida e calma, doce no meu amor por você. Como você me dói. Em todos os meus órgãos, alargando os meus poros, retesando as minhas vértebras: como você me dói.

(O barulho dos aparelhos do seu quarto ainda me assombra. Às vezes, eu tenho medo de acordar e descobrir que a gente ainda está lá. Eu espero que a gente nunca precise voltar.)

Você dorme bem quando eu estou por perto. Eu não prego o olho porque preciso trabalhar, mas não é só isso. Se eu dormir, eu te perco respirando – e cada vez que você respira é um afago no meu peito em chamas.

(Só recentemente eu descobri o que é amor. Tem muito pouco a ver com a pulsão avassaladora que eu senti lá pelos meus dezoito anos e muito menos ainda a ver com o sofrimento copioso sobre as garrafas de vinho. Amor não é novela. Qualquer percepção se torna fútil diante da grandeza de se encontrar paz no barulho do ar compartilhado. Amor é aprender a dar comida na boca, tentando disfarçar a mão trêmula. É não conseguir aplicar uma injeção ou ter que sair correndo sempre que alguém vai fazer um novo furo, abrir mão da própria sanidade para resgatar alguém do fundo do fundo do fundo. É dividir uma tarde de conversas bobas para não chamar atenção para o elefante que está no cômodo.)

Um dia de cada vez.
Seguro.
Amar é escrever até as mãos entortarem enquanto a boca permanece muda.

Juliana


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