A vida me fez crescer cedo demais


(Por Jéssica Santos)

A vida me fez crescer rápido, me forçou a amadurecer feito um corte seco e limpo, foi como uma cirurgia. Em muitos aspectos doloridos. Mas o pior deles foi definitivamente o meu “crescimento” sexual. Escolheram por mim. Decidiram que era o meu momento de ser mulher, e aos 5 anos eu cresci.  Meu tio me olhou e concluiu que ele podia me tocar e tirar de mim a inocência que era minha por direito. Ele, o filho dele, amigos da minha família, vizinhos. Todos homens que me olharam e não puderam controlar aquele seu desejo de tocar numa menina.

Todos os dias eu me pergunto porque eu continuo acordando. Porque eu continuo saindo da cama. Porque eu continuo colocando meus pés na rua. Em todo tempo me pergunto isso porque eu tenho em mim coisas que até pouco tempo atrás praticamente ninguém sabia. A campanha do #meuprimeiroassédio surgiu e ela me libertou. Infelizmente eu sou mais uma criança abusada, eu poderia dizer que eu fui, mas eu repito que eu sou sempre que preciso responder aos porquês da minha vida. Essa marca me faz viva.

Eu acho um masoquismo esquisito quando penso que eu não escolheria outra vida, podem achar que eu sou louca, até mentirosa, mas eu não escolheria ter outra história. Eu li em algum lugar que as pessoas mais bonitas que conhecemos são aquelas que conheceram o sofrimento, a luta, a perda, e encontraram seu caminho para fora da profundeza. E que essas pessoas tem um amor profundo e uma compaixão absoluta. Pessoas bonitas não simplesmente acontecem. Eu acho minha escada pra fora do poço todos os dias, e é assim que respondo aos meus porquês. Colocando meu pé na rua eu dou um soco na boca do estômago de quem decidiu tirar de mim uma parte bonita da minha vida.

Acredite, é foda você simplesmente respirar num ambiente onde as pessoas se acham no direito de te comer com os olhos, mais foda ainda quando elas se sentem no direito de sair da expressão popular e levar isso ao sentido literal. Homem nenhum jamais vai entender o que é andar na rua se sentindo pequena.

A cicatriz me gera inseguranças absurdas. Dos mais variados sentidos. Mesmo que eu levante, me mostre de pé ao mundo e as porradas que a sociedade insiste em me dar todos os dias, a insegurança anda de mãos dadas com a força da minha luta. Quando te abusam você se acha inferior. Você se acha pouco. Cê se afunda. E quando eu grito ninguém ouve. É uma curta linha tênue entre o saber que você é foda pra caralho e o “cara, eu só queria um colo”. “Uma pausa”. “Um amor”. Porque além de tudo vem isso aí junto: cê acha que ninguém vai te amar, você se fecha de uma forma escrota e não quer gostar de ninguém. E ao mesmo tempo você sabe que não precisa do amor de ninguém além do teu. Mas quem disse que você se ama? Pelo menos não 24/7.

É um misto de pensamentos, sentimentos, vontades. É tudo muito denso. Intenso. Áspero. Te tiram a calma, me tira o sono. A crueldade do mundo me tira o sono. Talvez por isso eu queira ser fotojornalista. Eu não quero dormir, eu quero que vejam o que eu vejo. São dias e dias de pensamentos soltos embaralhados como esse texto. Que nem eu entendo. Eu não entendo muita coisa. Mas eu entendo tudo.

Eu entendo o porquê isso aconteceu comigo. Eu sei que foi pra um dia eu sentar aqui no meu quarto e escrever pra você, mulher. Eu preciso que você ache a escada do teu poço. Eu to aqui com você. Eu e outras. Muitas. Pra cada homem que acha que pode te abusar, de toda e qualquer forma, existem outras dez de nós junto com você, te dizendo pra subir a escada. E do topo da minha enorme insegurança eu me faço segura se você precisar. E forte. Segure em mim, em nós. Juntas.

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