Eu sei que você já não mora mais aqui, mas eu preciso dizer: você foi o pior roomate que eu já tive. Eu sei que quando decidimos morar juntos nós nem nos conhecíamos, e que no começo tudo parecia uma verdadeira lua de mel. Com o tempo, porém, tudo ficou uma bosta… Você foi um péssimo companheiro de moradia e tive que suportar todos esses meses porque estava difícil de achar outra opção, o contrato ainda para vencer com multa e tudo.
Eu sei que não adianta muito eu falar tudo isso agora, porque você já foi embora e estou pouco me lixando para o que você vai fazer da sua vida. Estou fazendo isso por mim, porque preciso tirar essa raiva contida que parece uma bexiga pronta para explodir. Você não merece esse tipo de consideração, mas eu mereço.
Você não foi um péssimo roommate apenas porque vivia de ressaca aos domingos, alugando a sala, largado no sofá, sem pensar que eu poderia querer assistir televisão ou dar um almoço para amigos. Nem pelos sábados em que você convidava os seus amigos e passava noite adentro bebendo, fumando, falando aos berros e ouvindo música alta. Eu estava ali no quarto ao lado e você nunca me chamava.
Você não foi um péssimo roommate porque vivia mudando minhas coisas de lugar como se a casa fosse apenas sua, como se as minhas coisas tivessem menos importância que as suas. O jeito como você tirava minha roupa ainda molhada da máquina e jogava na minha cama, deixando tudo ficar com aquele cheiro de cachorro molhado.
Não estou escrevendo essa carta porque você vivia comendo as coisas que eu comprava e ainda por cima não repunha ou pedia desculpas. Nada disso realmente machuca. Essas coisas passam como os roomates ruins que a gente encontra na vida, sabe? O fato de você se esquecer sempre de comprar mais papel higiênico quando ele acabava pode ser apagado, eu posso diminuir a importância disso tudo com a ponta do meu dedo.
Você pensa que morar com outra pessoa seria uma experiência extremamente íntima, íntima o suficiente para conhecer alguém, entendê-la. Mas acho que não é assim. Vocês podem dividir o mesmo banheiro e até cagar no mesmo lugar, mas nada disso traz proximidade, nada disso cria empatia.
Estou escrevendo essa carta para você, o pior roommate do mundo. Por que eu sou você. Essa carta é para mim, essa carta é um pedido de desculpas, é uma autoavaliação. Eu fiz tudo isso com você e comigo mesmo, deixei de ver você como uma pessoa e um possível amigo e te tratei apenas como um pagador de contas. Só agora eu percebo como é difícil se colocar no lugar do outro, até quando você encontra aquela pessoa todos os dias, quando você poderia conseguir ouvir a respiração dela no quarto ao lado.
Desculpe-me por fazer tudo isso e espero que um dia você me perdoe, perdoe esse jeito filho da puta que eu alimentei por morar sozinho, por querer me isolar do toque e do afeto. Eu sei que você aguentou bastante e calado, já que você era do interior e não tinha para quem pedir abrigo até você achar um novo lar. Essa é uma carta aberta para o pior roommate do mundo que eu consegui ser com você.
Eu sei que não adianta muito eu falar tudo isso agora, porque você já foi embora e está pouco se lixando para o que eu vou fazer da minha vida. Estou fazendo isso por mim, porque preciso tirar essa raiva contida que parece uma bexiga pronta para explodir. Essa raiva de saber que fui um péssimo ser humano, o mais frio que poderia existir e que ainda convive aqui comigo, na mesma casa que você abandonou, sendo domado aos poucos.
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Nota do Bovolento: “A vida é um jogo de dados” é um livro de contos construído aos poucos por Rafael Farias Teixeira: toda semana um novo texto aqui no Entre Todas as Coisas. Depois ele é adicionado e compilado no aplicativo de leitura Wattpad. Clique aqui para ler o que já foi publicado.
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