A pior parte de ter um problema é admitir que você tem um problema


A pior parte de ter um problema é admitir que você tem um problema. Porque a partir do momento em que você o reconhece, essa pequena mancha que macula uma vida até então perfeita, é que ele se torna realidade. Se a máxima de que todo mundo tem problemas é completamente verdadeira, a de que todo mundo esconde que tem problemas é ainda mais verdadeira.

Admitir que você tem um problema é um entrave que você nunca vai apagar da sua vida, algo que te abraçará como um amigo ciumento, mas destrutivo, porque todo mundo a sua volta vai te enxergar, e vai enxergar também seu companheiro que impede de que eles falem com você do jeito que eles gostariam.

Um problema é um peso que te puxa para o fundo, que te rouba o oxigênio e te afasta de quem você ama. Porque assumir um problema é quase como se tornar o problema para quem te enxerga, e sua imagem, seu rosto, seus olhos mudam de repente.

Compreendam: quando eu digo que sou anoréxica, as pessoas automaticamente sentem medo de falar de comida a minha volta, ou não sabem o que me oferecer para comer – oferecem demais ou de menos; se eu admito que tenho depressão, uns acham que eu preciso arrumar o que fazer, porque depressão é coisa de gente desocupada, e outros saem escondendo objetos cortantes da minha vista; se falo que tenho problemas com álcool, as pessoas param de me chamar para sair, ou acham que não sei me divertir, ou acham que eu estou exagerando.

Cada problema se torna uma lista de interpretações confusas que quase nunca correspondem ao que a pessoa que o assumiu realmente sente. É um grande espelho que no final reflete as inseguranças dos outros em lidar com algo que é estranho, anômalo, o pato feio, o corcunda, o desfigurado.

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Não adianta esperar dias normais depois que você fala em voz alta, que você admite e assume seu problema. Não importa qual seja ele. Até sua percepção de si mesmo muda. A imagem do outro lado, seu reflexo, sua alma, nunca mais são os mesmos. Seus sentimentos se tornam mais verdadeiros e mais pungentes, porque não há mais do que correr, não há mais o que esconder. Você tirou a sujeira de debaixo do tapete, levou os esqueletos do armário para dar um passeio. Você colocou sua nuvem cinzenta numa coleira e deixou ela mijar no dia de todo mundo.

É ótimo ter problemas quando eles são cinematográficos, insípidos e assépticos. Problemas enfeitados e arrumados para preocupar na medida certa, para chamar a atenção correta, para atingir sem machucar. Mas problemas de verdade não têm moderação, não têm modos, nem etiqueta. Eles são filme B, pornô de fetiche, eles machucam os olhos, são espinhosos e asquerosos, eles não cheiram bem, eles não sorriem com dentes corrigidos e sorriso branqueado.

E ainda assim, mesmo sabendo de tudo isso, como é bom dizer, cada palavra, cada verdade. Eu tenho um problema. Eu tenho problemas. E a liberdade chega, a compreensão acolhe e parece que toda uma nova jornada começa. Engraçado como qualquer problema pode ser uma prisão e um salto de liberdade. Depende de como você encara ou de como você esconde. No fim você precisa amar os problemas com tudo aquilo que eles ensinam, os socos que dão, as decepções que engendram, as repetições e ciclos que montam para envenenar sua vontade. Cada problema é um amigoinimigo que você vai cultivar até ele não importar mais.

Porque o problema é uma parte de você, não é você, mas faz de você quem você é. A pior parte de ter problemas é admitir. Admitir que você os tem.

A melhor parte é descobrir que isso não importa.


Nota do Bovolento: “A vida é um jogo de dados” é um livro de contos construído aos poucos por Rafael Farias Teixeira: toda semana um novo texto aqui no Entre Todas as Coisas. Depois ele é adicionado e compilado no aplicativo de leitura Wattpad. Clique aqui para ler o que já foi publicado.

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