[Você pode ler este texto ao som de Amor Marginal]
FADE IN:
INT. CASA DE MIKAEL – DIA
Um close captura o rosto redondo de ALICE, com suas pálpebras manchadas de sombra preta. Ela acorda devagar, quase felina, e faz um som baixinho que parece um ronronado. Há resquícios de rímel na área sob os olhos grandes, dissimuladíssimos, de um tom que não é castanho nem verde, mas uma mistura encantadora, um meio-do-caminho entre os dois. Um plano americano captura as clavículas proeminentes, os seios pequenos, os quadris arredondados. Os dedos gordinhos de ALICE aparecem em evidência quando ela alcança um casaco de moletom vermelho, e a câmera torna a abrir o plano quando ela se levanta. Ao fundo, vemos um amaranhado de cobertores e uma distinta massa de fios cor de cobre.
MIKAEL
Você não precisa ir agora.
MIKAEL se movimenta debaixo dos cobertores e se senta devagar na cama. O plano americano captura o peito quase sem pêlos, a grande tatuagem que ele ostenta no braço esquerdo, a barba por fazer. MIKAEL tem um rosto atípico, alguma coisa no meio-do-caminho entre o agressivo e o delicado, entre o andrógino e o masculino das revistas. ALICE, desbotada ao fundo, veste suas calças pretas. A câmera agora captura o quarto inteiro.
ALICE
Sua namorada deve estar chegando.
MIKAEL
Não, eu disse que visitaria a minha mãe hoje.
ALICE pára, incrédula. A câmera se aproxima devagar de sua fronte contrariada e captura as sobrancelhas erguidas, a boca ligeiramente contorcida. MIKAEL funga e pega o telefone celular que está sobre a mesinha de junco ao lado da cama. Checa e-mails, mensagens, verifica se há algo novo. ALICE permanece imóvel por alguns segundos e a cena se desenrola num silêncio absoluto até que ela, agora vermelha de cólera, se aproxima da capa e estapeia a mão de MIKAEL. MIKAEL abre a boca em um “o” de espanto, desacreditado. O plano se abre.
ALICE
Sabe o que é, Mikael? Eu sinto muito. Não num sentido de “eu estou pedindo desculpas”, não, mas no sentido de que eu tenho tanta coisa apertada e em movimento no meu peito que não consigo acreditar na sua apatia.
MIKAEL
Eu não sou apático.
ALICE
Eu sinto tanto que eu tenho até medo. Desde que eu descobri que eu prefiro pecar pelo excesso, eu abracei minha ânsia e me joguei, sabe? Me joguei de verdade. No precipício, no abismo, nas pedrinhas lá debaixo, no teu colo mesmo.
MIKAEL faz menção de que vai dizer alguma coisa, mas ALICE prossegue, trêmula, nervosa, pela primeira vez capaz de verbalizar o seu mal estar.
ALICE
Eu não consigo viver a sua vida, Mikael. Eu não quero. Eu quero sentir dores horríveis, quero ter tesão por todos os períodos de tristeza, quero viver tudo por inteiro. Como você consegue viver só com metades, assim? Você me conhece? Você conhece ela? Isso não é um papo moralista monogâmico, é uma mera questão de entender como você nem se dói de desrespeitar alguém assim.
ALICE mexe no cabelo curto e suspira. Um close captura o exato momento em que seus lábios se contorcem e ela deixa que as primeiras lágrimas façam o seu caminho, perdendo-se na morenice do rosto e na gola do casaco puído. O plano se abre novamente e vemos que MIKAEL mantém os olhos grandes e a boca entreaberta, mas não demonstra muito além.
ALICE
Eu gosto da dor de viver, Mikael, gosto mesmo. Sou viciada nela. Gosto de tudo que machuca. Preferia que você me olhasse e dissesse que se enganou, que me mandasse ir pro inferno, qualquer coisa. Gosto de falar palavrão, de dar a cara pra bater, de oferecer a outra face. Me arranca sangue se quiser, mas não me ignora. Não tem nada pior do que oferecer reticências pra quem vive em caixa alta.
MIKAEL deixa os ombros caírem e funga.
ALICE
Você não vai dizer nada?
MIKAEL
Não tenho nada pra dizer.
ALICE bufa. Gira nos calcanhares, pega a mochila estampada de vermelho e laranja e joga-a nos ombros. Tira as lágrimas do rosto com o punho do casaco, aborrecidíssima, e suja a roupa. Não dá a mínima. ALICE sonha, por um momento, em terminar a cena de alguma maneira épica, mas decide que MIKAEL não vale o esforço. Assente mais para si mesma do que para ele e caminha para longe do enquadramento. Ouve-se a batida ruidosa da porta.
A câmera viaja devagar até MIKAEL, registrando o momento em que ele passa a língua pelos lábios. Desvia os olhos aflitos para o chão e se curva para alcançá-lo. Seu movimento é quase que em câmera lenta. Pega o celular e verifica que a tela está em perfeito estado. Ri alto, aliviado.
BLACK OUT.