[Você pode ler este texto ao som de Who’s Gonna Save My Soul]
Algum dia cinza, algum mês triste, algum ano catastrófico
Querida pessoa (que eu devia chamar por uma série de apelidos carinhosos),
Gostaria de iniciar essa carta fazendo referência a alguma piada interna que nós criamos no início do nosso relacionamento, quando tudo era bom e você ainda não sabia do meu medo quase patológico de baratas, mas não sei quem é você. Ainda não tive o prazer de conhecê-la, mas sei que terei o infortúnio de perdê-la. Sei, porém, que quando tudo estiver a ponto de acabar, não terei condições mentais de me despedir da forma que você merece. Somando isso com minha ansiedade crônica, achei de boa vontade adiantar minhas últimas palavras antes mesmo de te dizer as primeiras.
Acho difícil que tenhamos nos conhecido em alguma festa ou balada – não vejo esse tipo de evento no meu futuro breve. Sendo assim, o amigo em comum que nos apresentou está prestes a ficar muito bravo com a gente. Preciso lembrar, assim que terminar isso, de escrever uma carta para ele – ou ela. O ponto é que nos conhecemos, e foi bonito. Provavelmente contei alguma piada ruim, você riu porque estava bêbada, eu ri mais porque estava nervoso, acendi um cigarro e você não se importava muito com o cheiro e a fumaça.
Nós fizemos planos? Acho que fizemos planos. Uma casa em algum bairro bonito, com um quintal grande para os cachorros brincarem com tranquilidade. Uma escola hippie-esquerda-caviar para as crianças, uma motocicleta para quando eu entrasse na crise de meia-idade e idas esporádicas até algum motel caro, para reacender a paixão do casamento.
Não deu, mas eu preciso assumir que gostei muito desse plano e pretendo realizá-lo, mesmo que não seja com você. Acho que deve fazer o mesmo, contanto que nós procuremos bairros diferentes – seria bizarro encontrar uma cópia da minha vida ao sair para comprar pão na padaria, domingo de manhã.
Se, depois de entregar essa carta, eu pedir desculpa e dizer que a culpa é minha, não conteste. Ela muito provavelmente é minha, mesmo. Sabe, meu bem, eu tenho essa mania de ser culpado das coisas – mesmo quando elas passam longe de mim. Sempre que alguém tropeça na minha frente, imagino que meu corpo pode ter interferido no trajeto da vítima. Me vejo atrapalhando filas de banco, sempre penso que estou no caminho das portas do metrô e desconheço a proporção do meu ronco – imagino que ele já te tirou dezenas de noites de sono. Por tudo isso, peço desculpas.
Se me desculpo por tudo aquilo que deixaremos de viver, não peço perdão por tudo o que tivemos. Mesmo sem ter vivido nada, sei que crescemos lado a lado. Passamos noites em claro transando, tardes inteiras de domingo assistindo a séries ruins e diversas sextas-feiras nos sentindo culpados por faltar às festas dos nossos amigos.
Aconteceu, foi bom e acabou. Não, não vira pra mim e fala que deu errado. Se tivesse dado errado você não ia ter se encantado com tudo aquilo que eu já te disse, e eu não estaria sofrendo com nosso término sem sequer saber a cor dos teus olhos. Acabou porque, oras, tudo acaba. Dito isso, não te desejo outros começos, mas outros finais: que eles sejam tão carinhosos e cheios de amor como esse.