— Tem horas?
— Não tenho tempo — Ela poderia ter dito que já era tarde demais pros dois estarem ali. A festa já acabava e ele nem tinha olhos bons assim. Podia sentir o cheiro de alguma coisa misturado com whisky no hálito dele e preferiu nunca admitir que tinha bebido apenas água por medo de falar demais sobre si mesma. Ou de se revelar por ali. Olhou fundo nos olhos dele e sentiu vertigem. Ele era intenso. De uma forma desconhecida.
— Também não tenho. Nunca tive. Perguntei na esperança de ganhar algum.
— “O tempo não existe”.
— Quem quer que tenha dito isso, errou. O tempo bate na gente. Tá aí fora… — Divagou sabendo que ela não conseguia tirar os olhos dele. Quis esconder o rosto porque tinha vergonha das marcas, da linha de expressão bem formada na testa, das bochechas avermelhadas e dos lábios partidos pelo frio. Sabia que era tarde e sabia que não deveriam estar ali. Sabia que não deveria acender um cigarro porque ela poderia ser alérgica e não queria afugentar a moça. Ela parecia não saber pra onde ir também. Tirá-la dali seria deixar mais alguém sem proteção da chuva. E perdido já bastava ele.
— A mesma pessoa disse que “o tempo existe, sim, e devora”.
— Me devora?
— Mas eu não sei nem o seu nome — E sabia que não precisava saber. Sabia que o devoraria com olhos, mãos e com a boca livre do teor alcóolico dele. Sabia que ele escondia tanta coisa e que nunca tinha sido tão sincero com alguém como foi com ela. Sabia que se o devorasse, não sairia dele tão cedo. E não tinha medo de cair lá de cima. O problema dela era com ela mesma.
— Você não precisa de um nome e sabe disso. Ninguém precisa. A gente pede demais das pessoas e acaba com nada. Acaba pedindo um nome a troco de quê? Essa informação não muda o meu rosto, nem faz você gostar de mim. Não muda a minha história e nem adianta me acusar de falsidade ideológica. Um nome serve pra nada.
— Mas e o tempo? Serve pra quê?
— Se você me devorar, vai servir pra não ter deixado essa noite passar em vão. Sem ser consumida. Sem deixar que uma estranha pusesse as mãos em mim e descobrisse quão sórdido eu sou e já fui.
— Você não tem medo do que eu possa fazer com os seus segredos?
— Não — E ele sabia que era mais fácil confiar seus segredos a ela do que deixar seu padre ou amigos ouvirem atentamente aos detalhes que revelassem seu medos e sua falta de caráter. Sabia que quem conhece a gente costuma vir com mais pedras nas mãos do que os que desconhecem nossas frases feitas e nossos ciclos de clichê repetidos. E precisava que ela o devorasse. Pra ganhar a noite. Pra se sentir seguro. Mesmo que ela fosse uma vigaristazinha dessas que não bebe nada pra não se revelar. Mesmo que ela pudesse aparecer na frente dele com mil ameaças de contar ao mundo quem ele era. Ele precisava disso e precisava dela… — Tenho mais medo do que eu posso fazer com segredos entalados na garganta.
— Pois eu não tenho segredos.
— Então você não existe. Nem você, nem o tempo. E tudo não passa do fruto das minhas últimas dores de cabeça e da vertigem que senti quando olhei pra você de dentro da festa.
— Eu não existo — E a frase ressoou mais alto dentro dela do que podia imaginar. Mais tarde, quando batesse forte com o carro numa curva, saberia que o motivo do acidente era porque não existia. Porque ninguém sentia sua falta ou falava com ela sobre saudades. Porque ela parecia sóbria demais e porque bebia água em festas. Porque era contida e porque não tinha segredos. E não tinha vivido nada do que quis por receio de que pudesse fazer alguma coisa de errado. — Eu não existo, mas você me devora.
— Devoro?
— Tem devorado desde que chegou aqui e me revirou por inteira. Com esses olhos de caçador. Com essa fala que pede permissão e sai me invadindo.
— Eu te devoro e você ainda não disse se quer me devorar. Acho que preciso mais disso que você — E teria certeza de que ela o mudou completamente quando saísse correndo pelas escadas de incêndio naquela noite. Ele a veria do alto daquele prédio e admiraria a esperança bonita daquela moça sem rugas e sem expressão alguma de felicidade. E poderia dizer que era amor e destruição na fala dela. Ela não era sentimental. E perceberia isso na manhã seguinte quando ligasse a TV e visse suas fotos no obituário matinal. E se sentiria devorado por ela e pela coragem dela. E pararia de beber depois daquele dia.
— Te devoro. Tenho me devorado há anos e só agora percebi isso — Ele repuxou os lábios num sorriso enquanto ouvia o que ela falava. Pensou em oferecer cigarros, mas ela acabava de admitir que se devorava há anos e ele sabia que ela não o aceitaria por isso.
—Obrigado. Precisava de alguém que entendesse um pouco sobre dor e um pouco sobre desamor também. E um pouco de todas essas coisas que a gente nunca contou sobre a gente pra alguém.
— São 10 pras 2. A gente não deveria estar aqui ainda e eu não consegui descobrir o que é esse gosto misturado com o whisky que você bebeu. Você tem um cigarro? Não, deixa pra lá. Eu não fumo.
— Fica até de manhã que eu te pago um café. E daí você me devora pra sempre.
— Eu quero, mas não posso — Podia, mas a cabeça doía e já não gostava tanto assim dele. Pensou em perguntar seu nome, mas preferiu um corte indolor na apresentação e uma saída triunfante. Pensou se ficaria cansada em correr pelas escadas por 10 andares e ouviu a música ficar mais alta lá dentro. — Quem disse que o tempo devora a gente acertou. Eu me sinto devorada sempre que acordo e me falta ar. Deposito a esperança na conta do analista e no dia-após-dia que a gente tenta levar numa vida correta. O tempo também sufoca e as coisas do mundo ensinam a gente sobre desamor. Talvez o desamor seja uma versão mais visceral do que a gente entende por dor. Talvez seja só uma versão literal de quem a gente é quando se deixa devorar. — Saiu correndo sem olhar de novo nos olhos famintos por esperança dele. Pegou as chaves do carro no bolso interno da jaqueta e pensou num turbilhão de coisas que não a deixavam em paz. E descobriu que não queria nunca mais ser devorada numa curva de estrada às 4h da manhã de um dia qualquer. Enquanto isso, ele se deixava devorar mais um pouco pelo tempo e pelas coisas que acreditava serem impossíveis de desviar até encontra-la naquela noite.