Aniversários são sempre boas ocasiões pra reunir velhos amigos e perceber como o passado tem suas marcas nas falas e expressões de quem fez parte da sua vida. E os amigos, ah… Esses têm algum dom sobrenatural de transformar todo presente em nostalgia, e de fazer a gente perceber que algumas mudanças vieram junto com o tempo. Numa dessas comemorações regadas a uma boa cerveja e muito papo sendo jogado fora, lembranças e outras frases insignificantes, veio de uma amiga que me conhecia há anos a seguinte frase: “Nossa, mas como você mudou! Tudo o que eu falo vem acompanhado de uma risada maliciosa tua! E pensar que quando nos conhecemos você era o mais lento de todos!”.
Aquela frase passou despercebida e acompanhada de uma algazarra geral. Mas aquilo ficou cutucando, alfinetando, mexendo comigo como quem não quer nada. Não que eu tenha considerado ofensivo ou algo do tipo. Mas comecei a perceber e a enumerar um sem-número de coisas que mudam na gente com o tempo. Ou mudam de um dia pro outro sem que nós tenhamos ideia disso.
A inocência de quando se é criança, de entender tudo ao pé da letra, de rir do palhaço e achar um espanto se alguém falar um palavrão por perto. Alguns podem dizer que é normal. Que com o tempo deixemos de ser ingênuos. E eu não poderia discordar mais profundamente. Não ganhamos nada ao assumir no mundo essa postura de bem-entendidos, maliciosos, detentores da verdade e da ambiguidade engraçadinha das palavras. Me recuso a aceitar isso. Mas tenho de admitir: nesses 10 anos que se passaram, desde quando conheci minha amiga, perdi coisas pelo caminho por escolha própria. Talvez não sejam perdas se pensarmos no poder que tive de selecioná-las e descarta-las. Mas, num apanhado geral, foram perdas. E uma delas foi a capacidade de acreditar como criança nas coisas do mundo.
Não vou dizer que somos pessimistas quanto às coisas da vida. Não. Isso é assunto pra outro texto. Deturpamos a nossa visão sobre o valor das coisas que perdemos. Perdemos alguns medos que nos ajudaram a evoluir – e faz bem reconhecer que todo processo evolutivo sacrifica alguma coisa. Mas perdemos também medos que poderiam ter ajudado a construir melhor o nosso caráter. Fomos crescendo e perdemos a capacidade de confiar verdadeiramente no outro. Ou a capacidade de ver a beleza no meio de coisas bobas e cotidianas como o voo de uma borboleta – porque ganhamos um mundo que passa batido por efemeridades e só dá atenção a grandes fenômenos.
A conclusão é de que o tempo leva da gente um monte de coisa, e vamos perdendo coisas que fazem parte de nós. O que ontem era maravilhoso ou espetacular para você, hoje não passa de um pequeno detalhe que fica esquecido num canto da casa, e você não nota. E não foi aquela coisa que perdeu o significado. Fomos nós que perdemos alguns significados e valores agregados.
Eu, por exemplo, perdi folhas de papel, histórias em quadrinhos, bonecos de ação, carrinhos de bater, a euforia de rir de uma piada sem graça, a vontade de acreditar que papai Noel existia, uma roupa pequena, uma gota de chuva, um pé de feijão plantado no algodão, a graça da primeira paixão infantil, o tempo que podia gastar correndo e me sujando na rua, as broncas dos meus pais por não querer ir tomar banho na hora certa, a alegria de tocar a campainha e sair correndo, a disposição de ir à casa do meu melhor amigo de bicicleta, a inquietação de ficar acordado numa viagem longa e perguntar se já estava chegando…
Perdi coisas pelo caminho. Todos nós perdemos. E recuperá-las passa a ser algo que parece fora do nosso alcance. Porque mudamos. Porque não fazem mais parte de nós ou do que precisamos para os nossos dias atuais. E, talvez, num futuro breve ou distante, eu possa perder também essas palavras. Vai ver esse texto seja apenas mais uma lembrança de alguma coisa que eu esteja perdendo. E me resta a esperança de que, nesse processo, ao perder uma coisa, encontre outra para colocar no lugar.
(Esse texto é uma releitura de outro texto com mesmo título, que foi originalmente publicado no Entre Todas as Coisas em 10 de Outubro de 2010)
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