Um “eu te amo” roubado.


Assalto à mão armada. Sem pudor nenhum. À luz do dia. E de nada adiantaria chamar os policiais ou a força armada. Eles não entenderiam, e você continuaria tendo a razão. Só que não era dele. Nunca foi dele, e eu me recuso a admitir que você arrancou de mim assim, com tanta violência. E de modo impassível. Não se mortificou, não se arrependeu, nem ao menos hesitou. Não sujou as mãos de sangue nem fez um estardalhaço. As coisas continuaram no mesmo lugar e nem o vendedor de cachorro quente da esquina reparou. Você me corta e atravessa a rua. Com arma branca. Ou cinza. Sem olhar pros dois lados – nem pra trás. E entrega delicadamente a ele. Mas isso não é dele, meu bem.

Não dá pra registrar boletim de ocorrência. Ririam de mim. O mundo já foi do lado certo pro avesso, já rodopiou algumas vezes e eu continuo sem saber onde me encaixar. Furtado. Apreendido. Em choque com a rapidez da situação toda. Aquele “eu te amo” que era meu ontem, hoje em dia é dele. Eu nem sei se ele tem as mesmas pintas nas costas ou se ele usa relógio de pulso no braço esquerdo; eu nem sei se ele também se esquece das datas ou se ele cozinha pra você de vez em quando. Se vocês saem pro japonês às quartas ou se a rotina é alterada de acordo com o seu humor. Não sei se ele também se sente incomodado ou tomado por um assalto sempre que você olha nos olhos dele e diz que aquele eu te amo agora pertence a ele. Os tamanhos são diferentes. Eu calço 42 e ele usa M. Ele devia se sentir desajustado. Pressionado pra caber naquele molde. Equivocado nas palavras. Ele devia sentir que o seu beijo vem com um gosto meu. Que as suas manias vieram de mim. Que ele parece ter sido recortado de um livro avulso e jogado no meio da nossa história – no meu lugar. Ele não sou eu.

Daí você consegue me tirar dos eixos. Armar um sequestro do que a gente teve. Balbuciar pra ele – e pra quem mais, hein? Falsidade ideológica. Sentimental. O ideal mesmo era que você não traísse assim os nossos ideais, e a minha idealização de você. É estranho ver que a pessoa que fez parte da nossa história mais bonita não está mais nela, ou nós é que fomos descartados? Aquela música também era nossa. E você dedicou a ele. Com o violão. Com as cordas afinadas. Aquela camiseta que não coube em mim, e você disse que ia trocar, caiu bem nele. Azul não combina muito bem comigo. Mas precisava me substituir tão rápido assim? Você arrombou a minha porta e pegou as chaves. Chamou o novo eu de amor, pra me ferir pelas costas. Sorrateira. Saiu andando e entrou no carro. E ninguém reparou que ele não sou eu, como se fosse a coisa mais comum do mundo.

Você foi a mandante do crime. Mandou apagar o que era nosso. Desovou o nosso amor nas margens de um rio poluído qualquer. Diluiu o “eu te amo” em um monte d’água, e ainda se esqueceu de usar as luvas. Deixou vestígios pelo meu corpo inteiro. Uma marca de dedos na minha bochecha, uns arranhões nas costas e um vazio gigante no meu peito. Pra eu não me esquecer de quem fez isso. Pra lembrar que o meu melhor “eu te amo” foi roubado.

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