Corpo Alugado.


Pediu café. Bastante leite, moço. O gosto tem me enjoado. Gravidez? Não, não estou. Tem açúcar mascavo? Aprendeu a usar com a amiga. Então adoçante serve. Ajustou o cachecol laranja no pescoço e encostou os joelhos. Pés distantes. Sentada. Observava a vitrine da loja. Será que já está na hora das compras de inverno? Gosta de comprar tudo o que precisa de uma vez e sofrer mais tarde quando se interessa por peças que descobre em pequenas lojas de bairros moderninhos. Não pode mais gastar. Os olhos perdendo-se nos tecidos. Será? Aquela calça verde ficaria bem nela. Verde lembra alguém que a detestava no colégio. Um menino passa tomando um sorvete de cheirinho bom. Está frio. Estou gorda. Não posso. Talvez a calça verde ficasse bem há dois meses. Tem abusado de refrigerante e frituras. Por que faz tudo errado? Nunca foi assim. O que a faz ignorar tanto o espelho? Trabalho. Deve ser. Trabalho jogado no lixo. Melhor do que unhas postiças. Quando o celular toca, um número que desconhece. Não é mais aquele número perturbador. A voz, também desconhece. Quem é?, repete. Do outro lado, o silêncio é esmagado pelo som da linha telefônica. O sorvete do menino derrete e lambuza seus dedos e boca. Gritam seu nome. Não é ninguém. Estão de brincadeira comigo! Decide ir pra casa. Eu não sirvo pra passear no shopping mesmo. Moça, onde paga o estacionamento? Droga, deixei cair café na blusa! Moça, essa mancha sai? Não quer jogar fora a blusa. Tem um encantador valor sentimental. E de repente se lembra daquele sorriso. Ainda? Olha para cima e enfrenta: você tem de concordar que aquele sorriso absorve. Olha para baixo e entristece: sim, um canto de sereia. Desiste da mancha. Pra quê? Não tem mais conserto. Aproxima-se do carro. Um bilhete escrito a mão. Preso no limpador de para-brisa. Conhece a letra. Sente uma náusea típica da lembrança dessa letra. Do último adeus. Dos próximos meses mudos. Segredo trancado em seu rancor. A letra molhada. Você chorou? Ou guardou em potes a minha tristeza e agora me zomba? Rasga o bilhete e despeja os pedacinhos no lixo perto da porta. Era só o que me faltava! Foge fisicamente do dono da letra. Há meses. Mas ele se espalha por ela. Em uma foto encontrada na gaveta. Numa lembrança ruim. No próprio jeito como aumenta o volume do rádio. Numa blusa que escolhe para passear no shopping e falece manchada de café. A blusa que usava. A blusa que atraiu um romance vencido. Livra-se dela ali mesmo. As pessoas parecem não se importar. Até quando você vai continuar impregnado em mim? Tento me desfazer de suas frações. Aos poucos. Ou montes. Com violência delicada. A próxima pode ser a minha alma. E eu vou te culpar. Com uma carta enorme e bem escrita. Desaparece! Você e essa letra borrada. Sua voz fria. Os toques ausentes. Tudo o que eu queria hoje era comprar uma calça verde e usá-la, sem que você tivesse alguma coisa a ver com isso.

Priscila Nicolielo escreve até correio elegante. Roteirista do programa Esquadrão da Moda (SBT) por amor e dinheiro. Dramaturga em coma. Publica seus impulsos aqui e ali; sendo aqui, seu blog; e ali, seu tuíter.

Ela é a autora desse texto e, se eu fosse você, correria agora no blog dela para ler mais. É só clicar aqui.

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