Desde criança eu cultivo uma dicotomia sentimental quando me mandam arrumar o quarto. Por um lado, significava perder horas e mais horas jogando papel e outras tranqueiras no lixo e deixar de fazer alguma coisa mais legal. Por outro lado, minha arrumação era meio que o meu divã obrigatório. E essa coisa de terapia ocupacional foi ficando cada vez mais rara enquanto eu crescia, já que a empregada dava um jeito de juntar tudo e esconder de uma forma que eu nunca conseguiria achar de novo. Só que hoje eu tive a obrigação de arrumar o quarto por conta da mudança de apartamento e me deparei com caixas e mais caixas e um mundo de coisas pra arrumar.
O curioso do quarto é que ele é o lugar da casa que mais guarda segredos e histórias não visíveis a qualquer um. A gente abre a gaveta e joga um amor, pega um cabide e coloca uma morena de olhos verdes pendurada naquela marca de batom no colarinho, a gente abre uma caixa e revive umas cenas que a gente nem lembrava mais. Arrumar o quarto é meio que se atracar com o seu passado num estado de amor platônico. Você ri do nada – e a empregada te olha com uma cara meio desconfiada, quase ligando pro terapeuta. Você encontra rostos conhecidos e alguns que se perderam por aí faz tempo. O coração aperta, não aperta? São letras de mãos que contam mais que histórias: contam quem você é, foi ou deixou de ser de alguma forma. A composição do meu guarda-roupa é meio que assim: passado, presente, futuro e o que eu nunca vou deixar de esquecer. Inclusive eu me pergunto até hoje o que me fazia gostar de algumas bandas de Heavy Metal e – por que, Deus? – eu tinha regatas amarelas e verdes da cor da bandeira.
A parte divertida de deitar no divã do quarto é que você se analisa sem precisar de um desconhecido qualquer cobrando uma fortuna por uma hora de desabafo. No fundo, a gente só quer ser ouvido e não há ninguém melhor do que todos os personagens que a gente já foi um dia pra ouvir a gente. Eu esbarrei numa foto minha de moleque e percebi de cara que usava terno e gravata demais ultimamente. Afrouxei a gravata no mesmo instante em que quase notei um leve sorrisinho do moleque pulando na piscina. Reencontrei uma ex-namorada e ela vai bem. A cara de amarga dela já estava ali e a gente é que não via. Senti vontade de ligar para alguns amigos e é exatamente isso que você, leitor, deveria fazer quando sentisse essa vontade. Deixei pra lá e a saudade bateu de novo. Liguei meio que num choro copioso e fui sacaneado por todos numa roda de chopp. Se você agarrar a saudade na hora que ela vem, não é tão piegas assim. Saudade presa é que é brega. Mas o dia passou e as coisas foram se separando e as caixas estavam ali ainda. Daí é que eu percebi que além de divã, o quarto também foi meu lar e meu porto de despedida.
Engoli em seco quando fechei as caixas. E você deve se perguntar o porquê disso, não é? É que além das tranqueiras e fotos velhas que não tinham mais valor, eu jogava fora coisas que um dia foram importantes. Ou que ainda eram importantes e necessárias. E isso tudo me fez pensar naquele velho papo de que a gente precisa descartar o excesso, o que não nos serve mais, o que não é necessário pra ser feliz. E se uma caixa daquela me fizesse feliz ainda por algum motivo bobo? Uma caixa de brinquedos que poderiam servir de decoração no novo apartamento ou algo do tipo. Mas é que a gente tem que deixar ir. Todo novo ciclo pede uma entrada e uma renúncia. E a gente renuncia todo dia, toda hora, todo momento. Não só para ciclos longos, mas pra quando a gente acorda e vai dormir. A gente abre mão do sofá porque tem que trabalhar e da TV à noite porque o corpo pede calma. A gente renuncia o mundo com carinho porque sabe que cada caixa que vai embora é, no mínimo, um aprendizado. Ou uma saudade gostosa da gente mesmo. E daí, leitor, você sente uma nostalgia gigante daquele divã que o seu quarto oferecia e se pergunta se a bagunça inconsciente que se acumula dia após dia não é uma vontade nossa, bem sincera e honesta, de nos obrigar a abrir as portas, as caixas e analisar a vida de vez em quando. As caixas vão, mas a gente fica. Fica mais forte e mais nostálgico. Mais saudoso e mais notável também. As caixas vão embora, mas isso tudo fica.